São Paulo, domingo, 21 de setembro de 1997
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Coletânea traz um Celso Furtado atual

GILSON SCHWARTZ
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Economistas são produtos com vida útil limitada. Sendo o sucesso na profissão, em especial no Brasil, medido frequentemente pelos cargos e ministérios que alguém ocupa, é comum a celebridade esvaziar-se com a falência de um plano ou o esgotamento de um milagre. Diante da obra reunida por Celso Furtado, entretanto, precisamos de outra medida.
Aliás, Furtado está entre os raros economistas do mundo que têm não apenas uma obra, uma coletânea de coisas escritas e ditas, mas uma ética e um pensamento. Obcecado, recorrente, angustiado, mas sempre esperançoso, Celso Furtado está entre os poucos pensadores originais do desenvolvimento econômico.
A melhor descrição do seu caráter foi feita por um colega da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), da ONU, Noyola Vásquez, resenhando "A Economia Brasileira" em 1955: "trata-se de uma síntese feliz de lógica cartesiana e consciência histórica".
A economia não se presta a imagens poéticas, mas Furtado é uma espécie de João Cabral de Mello Neto do pensamento econômico.
Como na poesia de João Cabral, Furtado anda armado com navalhas analíticas que cirurgicamente expõem a realidade, mas obrigam o leitor a rejeitá-la em nome de algo melhor. No caminho de Furtado, a pedra que não se move é a pobreza do subdesenvolvimento material e cultural brasileiro.
A republicação, pela Paz e Terra, de vários textos seus sob o título "Obra Autobiográfica de Celso Furtado" -uma caixa com três volumes e um total de 390 páginas- é muito oportuna.
Até mesmo porque destoa do atual predomínio aparentemente inquestionável de uma visão tecnocrática da economia. Mas tanto a engenharia do Plano Real quanto a retomada de políticas de desenvolvimento passam pelo conhecimento de sua obra.
Os desafios da "âncora cambial", por exemplo, tornam-se mais claros relendo as análises que Furtado fez dos episódios de "socialização de prejuízos" na economia brasileira.
A sua lição está no convite a enxergarmos no mecanismo que parece puramente econômico um instrumento de força de uma classe social. A fronteira entre mecanismo e política, portanto, torna-se menos nítida.
Isso não conduz à dissolução da economia na sociologia. Mas evita que um mecanismo (a taxa de câmbio) seja analisado apenas financeira ou contabilmente.
A economia reaparece porque a identidade das classes sociais depende da sua inserção nos vários setores da economia (exportadores, assalariados, etc).
A primeira característica, a capacidade de traduzir cada variável da economia numa questão de política econômica, coloca Furtado na linha dos keynesianos (do economista John M. Keynes) de Cambridge. Lá ele passou uma temporada convivendo com Joan Robinson e outros da geração que tentava adaptar os modelos de Keynes às questões do crescimento.
A segunda característica, a recusa do enfoque contábil e a busca de uma visão dinâmica dos setores econômicos, coloca Furtado na linha dos estruturalistas latino-americanos da Cepal, onde ele também passou um período convivendo com a primeira geração, liderada pelo argentino Raul Prebisch.
O "caminho", entretanto, é a história. Desde 1946, quando ganha o prêmio Franklin D. Roosevelt (outro "keynesiano" histórico), em concurso promovido pelo Instituto Brasil-Estados Unidos com o ensaio "Trajetória da democracia na América", Furtado está atento às diferentes trajetórias percorridas pelas nações.
A comparação entre os modelos de colonização dos EUA e do Brasil é a base a partir da qual toda a sua visão da dinâmica do desenvolvimento ganha sentido. Nessa comparação, a dimensão do mercado interno é o fator decisivo. Desenvolvimento econômico torna-se sinônimo de amadurecimento de um mercado doméstico e, portanto, de distribuição de renda.
Furtado mostra como, na história econômica brasileira, os momentos de crise resolvem-se em desvalorização cambial. É a forma de socialização dos prejuízos por excelência, pois obriga os trabalhadores a engolirem perdas salariais, enquanto os setores exportadores tradicionais saem por cima. Os industriais, protegidos das importações pela moeda depreciada, também conseguiam avançar.
Nesse mecanismo bastante simples está o motor da concentração de renda e, por extensão, do subdesenvolvimento recorrente, apesar e por meio do enriquecimento das elites.
A âncora cambial do Plano Real, nessa perspectiva, deixa de ser apenas uma questão de maior ou menor atraso medido a partir de índices de preços ou de disposição do mercado internacional a financiar o crescimento.
A estabilidade amplia o mercado doméstico. Ocorre um "deslocamento do centro dinâmico" da economia. Numa visão keynesiana-estruturalista "à la" Furtado, a questão fundamental é saber se haverá, na estrutura econômica, setores capazes de investir na ampliação da capacidade produtiva.
Sem esse investimento, o "deslocamento do centro produtivo" gera apenas aumento de importações e maior dependência de financiamento externo.
Mas esse é um resultado paradoxal. O modelo "neoliberal" e "aberturista" de estabilização dependeria então, para sobreviver, de uma nova onda de substituição de importações!
A "equipe econômica" aproxima-se cada vez mais dessa visão, que aliás nada tem de neoliberal, porque o apoio ao deslocamento do centro dinâmico sem socialização dos custos depende da ação do Estado. Estamos de volta, portanto, às grandes questões levantadas por Celso Furtado em suas reflexões sobre o desenvolvimento.
A atualidade de Furtado não é casual. Depois da crise do marxismo e das desilusões do liberalismo, continua oportuna a busca pragmática típica de sua obra e, aliás, de tantos keynesianos e reformistas. Nem marxista nem neoclássico, nem revolucionário nem reacionário, Furtado está entre os que tentaram colocar pensamento econômico na história do Brasil.

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