São Paulo, domingo, 21 de setembro de 1997
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Falsificando a História Contemporânea

ALOIZIO MERCADANTE

Para Maria da Conceição Tavares e sua dignidade intelectual A entrevista do presidente da República no último número da revista "Veja" é reveladora e extremamente preocupante. Como a intenção do presidente era demonstrar que "não estou trabalhando às cegas (...) preciso mostrar a sociedade que tenho um rumo", sua leitura, talvez pela generalidade e inconsistência de muitas afirmações, deixa a sensação exatamente oposta.
Quando analisa a globalização, o presidente considera que estamos vivendo neste final de século uma transformação equivalente à da época dos descobrimentos. Imediatamente uma imagem me veio à lembrança, em um debate que participei com o grande Ariano Suassuna na Faculdade Largo de São Francisco em 1994, e o mesmo afirmava sobre o papel do intelectual: "O primeiro intelectual que aqui chegou foi o escriba da esquadra, Pero Vaz de Caminha. E fez sua opção, entre os índios e o Brasil, escolheu o rei e Portugal. A mesma escolha os intelectuais tiveram que fazer entre a senzala e a casa grande, entre a elite e o povo".
E FHC fez a sua, ao constituir essa ampla frente conservadora e desfraldar as velas do ajuste neoliberal a crer, quase magicamente, que os ventos supostamente benignos da globalização se encarregarão de conduzir o país a um futuro promissor.
O que o presidente parece não perceber é que as poderosas pressões da globalização, sem um projeto nacional de desenvolvimento orientado para uma inserção soberana do Brasil com políticas ativas do governo, conduz o país, como faz seu governo, a esse modelo de desestruturação subordinada da economia nacional. O mais provável é que, se escaparmos do naufrágio que vem atingindo os países que fizeram essa opção neoliberal, terminemos encalhados nas águas escuras da desintegração territorial e social, tragados pela voracidade do poderoso vizinho do "norte", que o presidente vê como modelo.
O presidente sugere "que se concentrasse em estudar os efeitos do sistema financeiro mundial nas diversas sociedades, pois não temos instituições de controle... com essa massa brutal de recursos que flutuam, não há país, não há governo, não há banco central, não há BIS, em Zurique, nada é capaz de controlá-la".
Finalmente, o presidente se reencontra com o nhenhenhém da oposição que vem tentando alertar o governo e sua equipe econômica, desde o início, quando se fez a opção pela âncora cambial e o real foi artificialmente sobrevalorizado. Essa opção de política econômica, acompanhada de uma abertura comercial selvagem, onde nem sequer as salvaguardas da própria OMC o país soube utilizar, vulnerabilizaram as contas externas do país. O déficit do balanço de pagamentos acumulado nos últimos 12 meses de US$ 33 bilhões, equivalente a 4,3% do PIB, está entre os mais elevados do planeta. O Brasil está totalmente exposto a um ataque especulativo da moeda e dependente desse capital especulativo que o presidente tanto teme na entrevista.
As elevadas taxas de juros praticadas em função da âncora cambial projetam um novo período recessivo. Parte de nossa estrutura produtiva está sendo desarticulada pela concorrência predatória das importações e pela inadimplência crescente, e o desemprego avança em todas as frentes, acompanhado pela exclusão social.
Portanto, para enfrentar os desafios da globalização não basta dizer que "é preciso se organizar de outra maneira". É preciso saber se essa outra maneira realmente cria as condições para contrarrestar as tendências de exclusão implícitas no processo, que se manifestaram em todos os países do continente que fizeram a mesma opção neoliberal, como México, Argentina e Peru, entre outros. E mesmo na Europa, onde a exclusão social crescente levou a uma reação política nas últimas eleições da França e Inglaterra. Nos próprios EUA, onde as elevadas taxas de crescimento e inflação baixa foram acompanhadas de um aumento nas desigualdades salariais e distribuição de renda.
Será que a desestruturação do sistema produtivo nacional, a desarticulação de complexos produtivos estratégicos, a degradação da infra-estrutura básica de apoio à competitividade sistêmica, a fragilização das finanças públicas, derivadas da opção pela âncora cambial e juros altos na adesão irrestrita ao receituário neoliberal contribuem para a criação dessas condições?
Será que a globalização conduz a homogeneização da base produtiva, como diz o presidente, ou, ao contrário, essa homogeneização se dá somente ao interior dos complexos multinacionais que atuam em escala planetária, e não dos espaços econômicos nacionais dos países de capitalismo tardio, que tenderiam, nessas circunstâncias, a uma crescente heterogeneidade e desintegração?
Será que as reformas institucionais conservadoras promovidas pelo atual governo estão orientadas para responder à questão dos "dois brasis", envolvidas nos aspectos anteriores e que o próprio presidente percebe como possibilidade de desdobramento futuro ou avançam para agravar o apartheid social?
O presidente afirma que será "por meio da educação que proporcionamos uma homogeneização interna, e essa homogeneização evita que a globalização implique exclusão". É inegável que a educação é uma exigência econômica e de cidadania neste final de século e o problema estrutural mais grave do país. É por isso que o PT tem lutado pela renda mínima vinculada à educação ou bolsa-escola para universalizar o ensino básico. No entanto, nós temos países como Argentina e México com o dobro da escolaridade média do Brasil e que continuam com graves problemas de exclusão frente ao modelo neoliberal, ou será que a escolaridade isoladamente resolverá o impasse dos "inempregáveis", para usar uma categoria também grata ao primeiro mandatário?
O presidente concentra seus ataques no PT, como já virou rotina, afirmando que "o PT foi ficando assim por incapacidade de absorver os ares do tempo... ficam dizendo estão dando a Vale do Rio Doce... estão vendendo a soberania do Brasil... não sabem o que dizem". Será que a privatização de uma empresa estratégica como a Vale por R$ 3,1 bilhões, que é a maior empresa exportadora do país e gera um lucro anual superior a R$ 500 milhões, para abater 1,5% da dívida pública mobiliária é uma opção de soberania? Será que privatizar todo o complexo Telebrás e as energéticas, substituindo por um conselho de regulação sem qualquer participação de representação da sociedade civil, acompanhado do esvaziamento do quadro técnico-burocrático e desmoralização da função pública é modernização do Estado e opção de soberania do país? Será que a desnacionalização acelerada de amplos setores da produção que não podem concorrer com a avalanche de importados que aumentaram em US$ 37 bilhões durante este governo é opção de soberania?
O presidente analisa a situação dos Estados e ataca novamente a oposição liderada pelo PT às suas propostas de reformas conservadoras afirmando: "O que acontece em várias unidades da Federação, hoje? Gastam tudo o que arrecadam com pessoal e previdência social e o pouco que sobra com juros?" Não foi o Fundo de Estabilização Fiscal que retirou R$ 1,7 bilhão do Fundo de Participação de Estados e Municípios? Não foi a atual política de juros que deteriorou de forma generalizada as finanças públicas no país? No próprio orçamento da União encaminhado para o Congresso Nacional não há cortes programados para as áreas sociais e um aumento de 45% nas despesas com o serviço da dívida pública? Não é a Lei Kandir que está retirando R$ 60 milhões por mês da receita fiscal do Estado de São Paulo e fazendo seu colega de partido Mário Covas, entre outros, desistir de uma anunciada derrota eleitoral?
O presidente ataca novamente o PT e afirma que "a esquerda sou eu" e que ser de esquerda é radicalizar a democracia. Será que a compra de votos para sua reeleição, ou impor a escandalosa lei eleitoral formatada sobre medida para o próprio presidente, ou governar com medidas provisórias é radicalizar a democracia? Abafar CPIs sobre o escândalo do Sivam, compra de votos, reeleição ou sobre as fraudes nos bancos favorecidos com a generosidade de R$ 25 bilhões é radicalizar a democracia? Tentar desqualificar e criminalizar o Movimento dos Sem Terra, mantendo impune toda a violência contra os trabalhadores no campo, é radicalizar a democracia?
Não é falsificando a realidade, manipulando conceitos e, como já se tornou hábito, deformando e desqualificando a priori qualquer argumento não alinhado com o pensamento neoliberal oficial que se pretende único que o presidente aumentará o espaço para um debate sério sobre os destinos do país. A impressão que fica da leitura da entrevista é que, mais que ir ao fundo das questões, o presidente optou por recorrer a artimanhas destinadas a confundir a opinião pública, apresentando como aparentes "verdades incontestáveis" colocações que são essencialmente ideológicas e tentando, como nos melhores tempos do regime autoritário, criar um "vocabulário novo" em que as conotações habituais das palavras se modificam em função da retórica presidencial.
Como afirma o próprio presidente, "preciso explicar para a sociedade que tenho rumo"; e "eu queria que os inteligentes compreendessem". As pesquisas de opinião já revelam que é nessa camada que o presidente despenca na preferência eleitoral, exatamente porque esses são os que compreendem e não concordam, porque desde o descobrimento e a escravidão há intelectuais que não fizeram a opção de Pero Vaz de Caminha e das elites. O próprio sociólogo, hoje presidente, em um Brasil que já não existe mais, foi um dia um deles.

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