São Paulo, domingo, 21 de setembro de 1997
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Simulacros da guerra

CÍCERO ANTONIO F. DE ALMEIDA

Minimizar a bravura dos conselheiristas e acentuar a agilidade dos soldados republicanos foi a estratégia da fotografia intitulada "Prisão de Jagunços pela Cavalaria", onde se nota claramente que tanto os soldados quanto os chamados jagunços estão "posando" para o registro. Na verdade, foi uma cena rara, pois em sua maioria os conselheiristas não se entregaram, lutando até o final de suas forças, o que levou o general Artur Oscar a manifestar o desejo de ver um jagunço vivo.
Até uma ação de combate foi simulada, caso da fotografia "39ª Batalhão de Infantaria em Fogo" (veja à pág. 5-7), registro feito em Monte Santo, onde não ocorreram lutas (tratava-se de um Exército de tiro). Devemos considerar que as dificuldades técnicas próprias do trabalho de fotografia naquele período não permitiam a agilidade necessária para a produção de registros instantâneos. Equipamentos volumosos e pesados limitavam a ação do fotógrafo.
Em outro registro, talvez o mais conhecido de Flávio de Barros, que apresenta o cadáver de Antônio Conselheiro (veja à pág. 5-5), encontrado sob as ruínas da igreja por ele projetada e construída, fica ainda mais clara a importância da fotografia em Canudos. No telegrama enviado pelo ministro da Guerra ao presidente da República, após o final dos conflitos, comunicando a descoberta e reconhecimento do corpo do Conselheiro, aparece a preocupação com a comprovação do fato por meio do registro fotográfico: "De tudo se lavrará um auto em Canudos, sendo o cadáver fotografado".
Em duas fotografias aparecem soldados e oficiais durante uma refeição. Era a simulação do bem-estar das tropas em relação à alimentação que, ao contrário do sugerido na imagem, foi um dos problemas mais graves de organização do Exército. Favila Nunes, correspondente da "Gazeta de Notícias", do Rio, chegou a afirmar que o pior inimigo das tropas era a fome: "Quer oficiais, quer soldados, recebem por dia um litro de farinha para sete homens, com um pedacinho de carne e um pouco de sal, de maneira que não há uma só pessoa que não se ache mais ou menos incomodada".
O caráter humanitário das tropas, mesmo para com seus inimigos, foi destacado na imagem "Corpo Sanitário e Uma Jagunça Ferida", onde vemos uma mulher com vestes características dos conselheiristas deitada e médicos ao seu redor. Cena bem diferente da relatada por frei Pedro Sinzig, que em seu diário escrito durante as batalhas reproduz o diálogo que manteve com um acadêmico de medicina. Ao ser questionado sobre o tratamento de conselheiristas presos, este teria afirmado que, se dependesse dele, "mandaria decapitar todos os jagunços, tanto homens como mulheres e crianças".
Terminada a guerra, tratou o Exército de dar ampla divulgação às fotografias de Flávio de Barros, tornando-as objeto de exposição pública. Em 2 de fevereiro de 1898, apenas quatro meses após o final dos combates, a "Gazeta de Notícias" trazia a seguinte propaganda: "Campanha de Canudos (...) Curiosidade, Assombro, Horror, Miséria (...)", e convidava seus leitores a assistirem a "cenas de toda a guerra de Canudos tiradas no campo da ação pelo fotógrafo expedicionário Flávio de Barros, por consenso do comandante em chefe das tropas". Na primeira edição de "Os Sertões" (1902) aparecem três exemplares do conjunto.
As fotografias de Flávio de Barros, revestidas do caráter de representação fiel do real, tornaram-se simulacros da guerra de Canudos, destinados à afirmação da superioridade e organização do Exército, desfazendo a idéia de despreparo das tropas e atenuando os exageros cometidos contra combatentes e prisioneiros.
Estas imagens, se integradas ao contexto que as produziu, podem servir como documentos mais amplos sobre os fatos ocorridos em Canudos, que nos possibilitem minimizar o trágico destino de um episódio ainda tão carente de intérpretes, rompendo o silêncio que se tentou impor a Antônio Conselheiro e seus seguidores, tornando-os personagens sem voz e, portanto, sem história.

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