São Paulo, domingo, 21 de setembro de 1997
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The ginyos do nacyonalyzmo

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Qualquer livro de Glauber Rocha vindo a lume merece ser louvado, discutido no Congresso, em praça pública, na Escola Superior de Guerra e junto ao Movimento Sem Terra.
Sempre nos títulos de seus filmes a palavra-chave: terra. A cósmica trilogia da terra: sol, transe, idade. O vaqueiro Manuel de Deus e o Diabo, o tio-avô de Stédile, é um lídimo sem-terra a oscilar entre a igreja e o cangaço.
"Terminei agora mesmo no céu o meu roteiro."
"Cartas ao Mundo" revelam o amor lindo e desesperado ao povo do Brasil e ao cinema, mas também seu ódio implacável à dominação colonial imperialista. Tênis azul em Nova York, tênis azul na Vila Madalena, corte de cabelo em São Francisco, corte de cabelo em Cataguases.
"Nunca se deve aceitar a Morte, sobretudo no eztylo", escreve Glauber para suas irmãs mortas. É a melhor prosa contemporânea. Coisa fina. "Evidentemente gostaria de dar, e não vender a vida ao Estado. Sendo o Estado sem juros."
Escritor extraordinário manejou com engenho e arte a língua portuguesa dos anos 2500.
Esta poesia ao mundo sob a forma de carta reforça, para além da aparência fragmentária, a unidade estética e política de seu pensamento, sem dúvida subversivo no Brasil depressivo de hoje. Intelectualmente Glauber sempre foi um cara antenado: ainda colegial se comoveu com o suicídio de Getúlio Vargas em 1954 e em 1959 se empolgou pela Revolução Cubana.
Eis sua principal fonte ideológica: a criação do Terceiro Mundo em Getúlio Vargas. O único cineasta brasileiro que amou profundamente a práxis política getuliana. "Getúlio é metáfora paralela."
Outro líder popular na história do Brasil admirado por ele foi o messiânico Antonio Conselheiro, a matriz mística de esquerda do Nordeste. Esse dois líderes -Conselheiro e Vargas, Canudos e Carta Testamento- são os personagens fantasmas que atravessam os roteiros kinéticos do Terceiro Mundo.
Nascido em 1939, depois da Revolução de 30, Vitória da Conquista, Glauber foi até o fim da vida, 1981, o intelectual nacionalista revolucionário. Em seu magnífico filme "A Idade da Terra", a "Nova New Geopolítica", a "Guernica" do nosso folclore, colocou Cristo descristificado dentro da questão nacional, mesclando nacionalismo com sentimento religioso, onde ouvimos Getúlio Vargas em Brasília na voz de Jamelão terceiro-mundista.
Em vez de enfatizar babacamente a "loucura", é mister por em relevo a lógica anticolonialista do pensamento glauberiano, herdeiro do nacionalismo trágico de 30 que viajou no desejo da utopia sonora de Villa-Lobos, de que resultou o cinema novo na década de 60.
Bastou partir desta vida o último superego nacionalista para a ex-patota do cinema novo escancarar o bumbum niuliberal iluminado pela TV leviatânica. A suposta "paranóia" de Glauber deve ser relativizada, se o ângulo de análise for a recente história do Brasil. Não tinha ele razão de associar seu nome ao de Jango em 1964 e 1974?
Sua morte foi um alívio geral. Bem feito, morreu cedo. Alívio inclusive para o presidente José Sarney, sem falar dos coleguinhas na área do cinema e da MPBXÉU. Estava fora de perigo em off o inconsciente coletivo da cultura brasileira: morto aos 42 anos. A partir daí valeu tudo; mas o feitiço acabou virando contra o feiticeiro: quantas vezes ainda será preciso matá-lo?
Em 1997 começa a feder por todos os lados a culpa, na cultura brasileira, por não tê-lo levado a sério. Infelizmente Glauber não conseguiu se candidatar à Presidência da República. O próximo passo é editar sem cortes sua Jangarana: a mixagem de Guimarães Rosa com João Goulart.
Ler hoje as epístolas literárias de Glauber (que, de resto, deveriam ter sido publicadas há tempos com intuito de evitar o pesadelo desnacionalizado de Collor, Itamar e FHC) não deixa de ser um exercício doloroso e divertido neste "Mar de Merda Cultural" onde estamos todos envolvidos de carne e osso.
A volta ao reprimido. O profeta póstumo falado todos os dias pela mídia, com ou sem má consciência. Em suas cartas à posteridade, Glauber cantou a jogada: a democracia niuliberal (a Constituinte exclui a inteligência descolonizada) fechará a Embrafilme: é o futuro adeus ao cinema nacional em pleno deserto de idéias. A neo-escravização do povo brasileiro. Venceu a TV antinacional.
A "Sociological Kolônya" de 1994, convertida em pátria sem patrimônio bioenergético ("kinema é petróleo"), aparecia anunciada em seu romance "Riverão Sussuarana" de 1977, o "Grande Sertão: Veredas" de esquerda: "Minaz é por cima de Tókio".
Ele disse quase tudo sobre si mesmo quando escreveu, numa belíssima carta, a fórmula translinguística que o explica: o barato "H (eu, I, io) stórico", a simbiose da esfera pessoal com o fluxo da história, o que lhe permitirá estetizar com verossimilhança goethiana a vida dele, aliás, bastante errática e tumultuária. Assim, a separação amorosa da atriz francesa Juliet Berto, a ex-namorada de Jean-Luc Godard (personagem mais popular nas ruas do Rio de Janeiro do que De Gaulle), significou para Glauber mais um indício da superioridade do Kinema Nuevo sob a Nouvelle Vague.
Não obstante o estado de penúria em que viveu, sempre com problema de grana, pintou olho gordo em cima dele, sendo invejado por causa da exuberância criativa que ninguém perdoa.
"Cartas ao Mundo": Glauber tinha plena consciência de sua morte sem data.
Embora não acreditasse em Deus, ele acreditava na imortalidade.
Hoje sabemos, repetindo o anexim grego: um vale mil se é o melhor. "Eu não compito. Eu existo." Numa carta engraçadíssima, pedindo bolsa de estudo em Oxford ao diplomata José Guilherme Merquior para teorizar sobre o teatro socialista gay de Oscar Wilde, escreveu Glauber: "Minhas macumbas me levam do terreiro da umbanda às feitiçarias de Blake".
Não preciso dizer mais nada. Nem me foi perguntado.
Bon voyage, desocupado leitor.

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