São Paulo, domingo, 21 de setembro de 1997
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Depois o mundo ficou ruim

JOEL PIZZINI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A luta contra o provisório sempre marcou a obra de grandes pintores como Iberê Camargo, morto em 1994. Nos dois últimos anos de sua vida, no afã de um inventário crítico de seu trabalho, o artista consumiu grande parte do tempo na revisão de livros e catálogos que saíam a seu respeito.
Tudo acabou saindo como ele imaginara, ou quase -inclusive um documentário que o próprio Iberê sugeriu-me, quando fui convidá-lo, como ex-aluno de Giorgio De Chirico, para atuar no filme "Enigma de um Dia". Rejeitando naquela altura a condição de discípulo do gênio italiano, Iberê reagiu secamente à proposta: "Meu mestre está morto e paguei por todas suas aulas, portanto só me interessa participar do filme que você fizer sobre a minha obra". Ali começava a se desenhar "O Pintor", um filme sobre o mestre expressionista.
Faltou pouco tempo para dirigir o pintor. Com a morte de Iberê, o documentário se articulou basicamente a partir de material de arquivo. Faltou pouco tempo também para o pintor digerir o impacto que toda essa investigação sobre sua arte provocaria. E, quando se anunciava que Iberê voltaria à cena por meio da publicação de suas memórias, surge em Porto Alegre o romance "Iberê", de autoria do jornalista e escritor gaúcho Paulo Ribeiro, que revisita o drama que abalou o artista. Legítima intenção, considerando-se a visão já formada a respeito, hoje obscurecida pelo silêncio imposto pelo artista em vida e o puro rechaçamento da mídia.
Logo no primeiro capítulo, o livro faz menção à tragédia protagonizada pelo pintor aos 66 anos, em dezembro de 1980, no Rio de Janeiro: envolvido, por acaso, num incidente de rua -uma briga de casal que não conhecia-, Iberê ao encarar o marido é atacado violentamente e acaba matando o seu agressor a tiros. Preso e julgado, é absolvido por legítima defesa. Naturalmente, esse triste episódio passaria a "regignificar" toda a vida e obra do artista. Alvo de um bombardeio sensacionalista, sua arte também virou vítima. Sua biografia de luta pela liberação da importação de tintas, manifestos contra o regime militar e em defesa da ecologia foi subitamente esquecida.
Devido à intervenção do Marechal Cordeiro de Farias, seu conterrâneo e admirador, que lhe conseguiu prisão especial, pois o pintor não tinha curso superior, Iberê foi taxado de "direitista". Desse pesadelo sairia com um câncer, acentuaria sua visão sombria do mundo, presente desde as primeiras fases, e se veria obrigado a voltar definitivamente para o Rio Grande, onde teria até quadros retirados de uma galeria.
Estranhamente, cresceria o interesse pela produção do artista. Curiosidade? Indignação? Morbidez? Tornou-se comum o esforço de setores da crítica em tentar identificar sinais de agressividade e loucura nos gestos e nos quadros do pintor. De certa forma, o romance "Iberê" também cai nessa armadilha. Ao montar uma trama intrincada de conspirações, "jogos de influência" e insinuar possíveis sintomas que levaram Iberê ao suposto crime, Ribeiro nada mais faz do que estetizar o "assassino".
O livro imita a realidade quando precisa e a inventa quando convém. Ou seja, hesita, fica no meio do caminho. O autor, por exemplo, afirma no pós-escrito do seu "romance" que o livro é resultado de uma "longa e formal entrevista" com o pintor, a quem, ao final de cada encontro, o texto era submetido para revisão (para comprovar isso o autor reproduz algumas das páginas corrigidas à mão por Iberê). É bem possível, no que se refere às memórias do pintor, que isso tenha realmente acontecido. Os relatos conferem com outros registros.
Difícil acreditar, porém, que Iberê tenha corroborado as fantasias de Ribeiro sobre o incidente fatídico. Curiosamente, ele não reproduz nenhum manuscrito de Iberê sobre isso. Acontece que, apesar de generoso com estudantes e estudiosos de seu trabalho, a quem recebia em seu ateliê aos domingos, Iberê não se dispunha contudo a falar nem uma linha sequer sobre o ocorrido.
É claro que se o livro fosse um romance deslocado da realidade, tal ponderação não teria menor sentido. Construído como um mosaico jornalístico e calcado em fatos já conhecidos do itinerário do pintor, a novela de Paulo Ribeiro, em vez de lançar uma nova luz sobre a dimensão trágica deste episódio, acaba carregando nas tintas e se rendendo às tentações apelidadas do gênero. Pinta um quadro "maneirista" do artista. Lembra um "thriller" policial do tipo "baseado em fatos reais".
No documentário que fiz, deparei-me com este impasse: como abordar o incidente dentro da linha evolutiva do pintor que relutava em comentar o fato. Como minha pulsão era de natureza estética, decidi tratar a dramaticidade de sua pintura como valor plástico. "O drama trago-o na alma", dizia Iberê, que no filme revela o peso da tragédia no contexto de sua obra: "...Depois vieram os carretéis, fui me interiorizando, as coisas foram se adensando. Depois a vida me pregou uma peça. Depois o mundo ficou ruim".
Deslocando, então, o foco de aproximação, "O Pintor" põe em primeiro plano a oficina do artista, numa tentativa de apreender a relação visceral entre o ímpeto criativo, a mão, o gesto, a cor, relação esta que confere dramaticidade à sua estática. Procurei revelar sua trajetória segundo uma "lógica espacial" (não-cronológica), ou seja, por meio do deslocamento do artista no espaço e não no tempo. Estruturado em meio às oposições e contradições do pintor, o filme procura dialogar com sua forma de pintar, em camadas sobrepostas, e no seu contato tátil e sensual com a matéria ("a matéria tem que virar víscera para depois ser", sustentava).
Exemplarmente documentada, a vida-obra de Iberê vem sendo objeto de criteriosas especulações ensaístico-literárias. Ao contrário do personagem, não menos instigante, que no seu primeiro "romance" aparece caricaturado.

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