São Paulo, domingo, 21 de setembro de 1997
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O poder das assombrações

OLAVO DE CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Num artigo publicado outro dia na Folha, o sr. Otavio Frias Filho acusou-me de açoitar um cavalo morto: a ideologia esquerdista. Semimorta e exangue por toda parte, a infeliz criatura teria recebido de José Guilherme Merquior o golpe de misericórdia, já na década de 70, encontrando-se desde então inapelavelmente defunta. Aos discípulos do temível hipocida, entre os quais o sr. Frias me inclui, caberia agora a obrigação de prover aos antigos usuários da vítima uma nova força de tração para ajudá-los a puxar o carro da história, em vez de ficarmos a reencenar em vão os feitos mortíferos de nosso amado guru.
Pouco propenso a comover-me com dramas cavalares, observo, em primeiro lugar e com a maior frieza, que a besta supostamente falecida relincha diariamente nas colunas do jornal do sr. Frias, com soberba indiferença ao atestado de óbito firmado pela autoridade aparentemente indiscutível do diretor da publicação. Não encontro outra explicação para este insólito estado de coisas senão a hipótese de que o dito animal, sendo marxista da linha Groucho, não lê jornais que aceitem seus artigos.
O que não se deve imaginar é que o próprio sr. Frias não leia o seu jornal e por isso ignore os nomes e as idéias de alguns de seus mais assíduos colaboradores. Ao contrário, se ele os denomina mortos, não é porque ignore que estão vivos, mas para dar a entender, precisamente, que são mortos-vivos -no que aliás acho que tem toda a razão.
Ora, as assombrações têm, sobre a imaginação humana, um poder maior que o de qualquer vivente. Sendo assim, não é de estranhar que a ideologia esquerdista, morta em toda parte como teoria, ressurja como sugestão hipnótica no mais imaginativo dos países, e ali exerça com tanto mais força seu influxo fantasmático sobre a educação de crianças e adultos, o movimento editorial, a imprensa cultural e, "last not least", a política. Já observei, em "A Nova Era e a Revolução Cultural", que, no descompasso crônico entre nossa vida mental e o relógio europeu, são justamente as teorias falecidas de ultramar que chegam aqui carregadas de maior potencial de expansão e acabam por adquirir, em terras do Novo Mundo que virou Terceiro, uma segunda vida que confirma o dito de Marx sobre a história que se repete como farsa.
Em 1930, fizemos uma revolução inspirada no conceito positivista do Estado, do qual na Europa não se ouvia falar desde a eclosão da Primeira Guerra Mundial. O espiritismo tornou-se entre nós quase uma religião nacional décadas depois de o prestígio de Allan Kardec e das irmãs Fox ter-se eclipsado no mundo. E foi justamente após o naufrágio do eurocomunismo que as doutrinas de Antonio Gramsci, que o inspiravam, adquiriram no Brasil maior força de penetração, dominando hoje o pensamento nacional pelo menos nas áreas de educação básica e assistência social, tão decisivas, segundo esse ideólogo, para incutir nas crianças as sementes das futuras ambições revolucionárias.
É, pois, no mínimo imprudente dar por pressuposto que o marxismo, por ter morrido nos círculos intelectuais europeus, não esteja vivo na imaginação brasileira, e tanto mais carregado de prestígio irracional quanto mais desmoralizado intelectualmente no mundo.
E como existe uma diferença profunda entre combater idéias vivas e exorcizar seus fantasmas, tal é também a diferença, que o sr. Frias não viu, entre livros como "O Argumento Liberal" ou "A Natureza do Processo", de José Guilherme Merquior, e os meus. Ali, tratava-se de debater doutrinas, de opor argumentos à teoria da mais-valia ou da luta de classes, de confrontar dois modelos de sociedade, duas noções do progresso histórico, dois conceitos da liberdade humana. Tudo isto está feito e bem-feito. Repeti-lo seria, de fato, açoitar um cavalo morto.
Mas basta examinar os meus livros para verificar que ali não se encontra nada disso. Em parte alguma dei-me o trabalho de discutir a ideologia esquerdista enquanto tal, isto é, seus conteúdos explícitos. Só o que me interessou, sobretudo em "A Nova Era" e em "O Imbecil Coletivo", foi sondar o imaginário e a psicologia das classes letradas, em parte para tentar explicar as causas de seu apego a idéias já amplamente refutadas, em parte para tentar curá-las desse apego.
Dessa diferença provêm duas outras: a do tom da mensagem e a da consequente reação do destinatário.
Merquior, intelectual de esquerda convertido ao liberalismo, discursava no tom de quem deseja converter seus pares. Conservava, no essencial, o tom e o vocabulário do debate acadêmico, apenas temperado, aqui e ali, com saborosas tiradas de humorismo popular. Falava aos intelectuais de esquerda numa linguagem que lhes era familiar e argumentava em favor de uma opção que não lhes era desconhecida. Era um adversário facilmente catalogável, que podia inspirar aos interlocutores, às vezes, uma certa irritação, mas nenhuma estranheza ou insegurança.
O" Imbecil Coletivo", em contrapartida, fala aos intelectuais numa linguagem debochada que eles empregam com frequência para falar dos outros, mas na qual jamais tinham ouvido falar deles. Busquei aí um efeito de espelho: como é que você, professor, cientista, homem de letras, se sente ao ouvir falar de você no tom em que você fala de políticos e empresários, líderes sindicais e padres?
É evidente, porém, que um efeito curativo não poderia ser obtido apenas mediante a imitação do tom e do vocabulário. Tomando os intelectuais como classe, voltei sobre eles, também, os instrumentos de análise ideológica com que eles costumam vasculhar o discurso alheio. O resultado foi um painel grotesco da estupidez humana, no qual figurava como epítome da burrice universal justamente a classe que se arroga o poder de guiar intelectualmente a humanidade.
A reação inicial foi precisamente de estranheza e insegurança, seguidas de uma explosão de ódio irracional. Tudo isso fora meticulosamente calculado para fins terapêuticos. O psiquiatra húngaro Lipot Szondi -um de meus gurus- chamava a esse efeito psicochoque: após a descarga de ódio, vem a ressaca -uma depressão infame. Na solidão da sua miséria tão escandalosamente mostrada e tão histericamente negada, o paciente admite em segredo que mentiu para si mesmo e começa a pensar. É o princípio da cura.
Por isso permaneço insensível à cobrança do sr. Frias. O intelectual que não suporte bem a experiência prolongada da dúvida e do vazio, que necessite incondicionalmente preencher seu espaço interior com um corpo de crenças prêt-à-porter e uma explicação integral da história que lhe dêem um sentido de vida fácil e improblemático, esse não é de maneira alguma um intelectual, é um menino sonso carente de cuidados maternais. Não faltam organizações de massa dispostas a lhe prover esses cuidados e até a dar ao seu ego o considerável reforço de um crachá de "intelectual", tudo em troca de módicos serviços eleitorais e publicitários, informais e sem compromisso.
Quanto a mim, prefiro abandonar esses meninos ao relento, famintos e desprovidos como nasceram, para que dessa dura experiência ascética emerjam um dia fortes e independentes, capazes de guiar-se pela sua própria inteligência em vez de confiar-se aos falsos consolos de uma retórica coletiva qualquer.
O que faço com essas pessoas não é persuadi-las a abandonar um discurso partidário para seguir um outro, mas simplesmente mostrar-lhes que podem sobreviver sem nenhum. Podem, se é que são intelectuais de verdade. Se não são, então seu caminho de vida é outro: que abdiquem já dos postos de liderança cultural que indevidamente ocuparam. Que se recolham ao seio de alguma igreja ou partido, na condição de humilde massa de manobra que é o que sempre foram. Se minha obra servir para mostrar a uns o caminho da independência e a outros a porta da rua, terá cumprido sua missão.
Mas, se não posso nem quero dar a uns e a outros uma fórmula de mundo, posso lhes dar alguns temas inéditos de filosofia política, para que tenham alguma coisa nova e revigorante em que pensar durante os primeiros passos de sua convalescença. É o que farei, data venia, em artigos vindouros.

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