São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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Crime político fica encoberto por 21 anos

EMANUEL NERI
DA REPORTAGEM LOCAL

Durante 21 anos, a família de Neide Alves dos Santos, morta em 7 de janeiro de 1976, conviveu com a versão policial de que ela se suicidara ao atear fogo ao corpo. O pesadelo da família está para acabar. Neide deve engrossar as estatísticas das vítimas do regime militar.
Ao contrário de outras vítimas daquele período (1964-1985), o nome de Neide não aparece em nenhuma das listas e dossiês das 369 mortes e desaparecimentos atribuídos ao regime. Pobre, nordestina, comerciária, sua morte nunca foi notícia. Só a polícia e a família, que reside no Rio, sabiam.
No próximo dia 2, o mistério em torno de Neide, que militava no PCB (Partido Comunista Brasileiro), começa a ser esclarecido.
Nesse dia, a comissão criada pelo Ministério da Justiça para examinar mortes e desaparecimentos no regime militar deve reconhecer a responsabilidade da União por mais esse crime. Sua família deverá ser indenizada.
Vida poupada
Caso não tivesse permanecido encoberta, a morte de Neide possivelmente teria importância no encerramento da repressão política violenta no país. Ela ocorreu entre as mortes de Vladimir Herzog, no dia 25 de outubro de 1975, e a de Manoel Fiel Filho, no dia 17 de janeiro de 1976.
Se a morte de Neide tivesse sido divulgada, o desmantelamento do aparelho repressivo que funcionava nas prisões de São Paulo poderia ter sido apressado.
"É bem provável que a vida de Fiel Filho tivesse sido poupada", afirma o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, da USP.
Quando Herzog morreu, vítima de torturas no DOI-Codi paulista, órgão militar que atuava na repressão, o então presidente Ernesto Geisel prometeu afastar o comando do 2º Exército, sediado em São Paulo, caso ocorresse uma nova morte em um presídio militar.
A ameaça se consumou com a morte de Fiel Filho. Geisel afastou então o general Ednardo D'Ávila Melo do comando do 2º Exército, encerrando o ciclo das mortes nos presídios. Ednardo possivelmente cairia antes, caso a morte de Neide tivesse se tornado de conhecimento público.
Apesar dessa importância histórica, a motivação política da morte de Neide por pouco não ficou submersa para sempre. O promotor Paulo Gonet, da comissão que examina as mortes políticas, indeferiu pedido da família para que a União fosse responsabilizada pelo crime.
Na época, em agosto do ano passado, o advogado Luís Francisco Carvalho Filho, também integrante da comissão, pediu para analisar o processo. A partir daí, começou a puxar o fio do novelo das inúmeras evidências que apontam na direção de mais um crime político.
São muitos os sinais de que Neide foi morta: várias contradições no registro de sua morte (a versão é de suicídio, mas o delegado assinala "morte natural"), a presença da letra "T" (usada para designar terroristas) na requisição para que seu cadáver fosse submetido a necropsia; a causa da morte ("suicídio com fogo", caso raríssimo), entre outras (leia texto abaixo).
Coincidência de datas
O fato de a versão oficial da morte de Neide ter sido suicídio, a mesma explicação para as mortes de Herzog e Fiel Filho, além da coincidência das datas, despertou o interesse de Carvalho pelo caso.
Depois de intensa pesquisa, seu voto está pronto e será dado no dia 2. "Não posso revelar o voto que vou dar na comissão, mas a versão de suicídio ainda permanece estranha", diz Carvalho. "Há fortes indícios de que o Poder Público ocultou deliberadamente a morte de Neide", afirma o advogado.

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