São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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Conversa de chorões...

ROBERTO CAMPOS

"O Brasil não mudará seu comportamento por argumentos de lógica e eficiência. Poderá entretanto ser salvo ou pela anedota ou pela falência" Do "Diário de um Diplomata"

A lei complementar nº 87, de setembro de 1996, representou enorme avanço na racionalidade fiscal. Ao eliminar a carga do ICMS sobre exportações e investimentos fixos, reduziu o "custo Brasil" e dinamizou investimentos. Em três trimestres após a vigência da lei, o volume das exportações de produtos básicos aumentou 18,2%, enquanto as exportações totais cresciam apenas 3,9%. A produção de bens de equipamento reverteu sua tendência declinante, crescendo 3%.
O brilho desse avanço na racionalidade fiscal é empanado pela estática criada por alguns Estados, que exigem compensação por supostas "perdas" de sua receita tributária. Mas certamente os tributos sobre a exportação prejudicavam nossa competitividade, e os sobre bens de capital puniam os investimentos. Eram portanto um tiro no pé. Os Estados chorões estão se comportando como atletas que exigem um prêmio por consentirem em não dar um tiro no pé...
Sem aceitar o princípio de compensação de "perdas" -pois seria necessário contrabalançá-las com os "ganhos"-, o governo federal negociou com os Estados uma engenhosa fórmula de "seguro de receita". Compromete-se a repor o nível da receita estadual anterior à lei, atualizando-o monetariamente e adicionando-lhe um coeficiente de crescimento real de 3%. Reconhece-se assim aos Estados um "direito de gastança", coisa que não acontece nem aos assalariados (que podem perder salário real) nem às empresas (que podem sofrer recessão de vendas).
É necessário pôr os pingos nos "is". A tributação estadual sobre exportações de bens primários e semimanufaturados foi uma das funestas invenções da Constituição de 1988. Na concepção da Constituição anterior, de 1967, havia um tributo regulatório do comércio exterior, que poderia ser instituído não como receita ordinária da União e sim para estabilização de preços de produtos sujeitos a flutuações cíclicas.
A União, onde ninguém reside -pois todos habitamos nos Estados e municípios-, foi a grande espoliada na Constituição de 1988, que descentralizou receitas em favor de Estados e municípios. Isso teria sido saudável se também se descentralizassem funções. Como isso não ocorreu, a União ficou condenada a um desequilíbrio financeiro estrutural.
A principal devastação foi a abolição da participação federal nos chamados "impostos únicos" -sobre combustíveis, eletricidade e minérios-, que passaram a ser exclusividade de Estados e municípios, os quais absorveram também o imposto sobre telecomunicações. Isso explica o atual perigo de racionamento de energia elétrica, pois a União perdeu o Fundo Federal de Eletrificação, com o qual financiava hidrelétricas interestaduais. Explica também o miserável estado das rodovias federais, privadas dos recursos do antigo Fundo Rodoviário.
Esse maciço despojamento da União só teve um efeito benéfico: impulsionar a privatização. Infelizmente, nosso privatismo não resultou de uma opção racional pela eficiência. Foi um subproduto benigno da falência do Estado.
Beneficiários de novas receitas, reforçadas pelo aumento das alíquotas de combustíveis e eletricidade, vários Estados se entregaram a uma orgia de gastança, com ampliação do funcionalismo e sustentação de bancos e estatais inviáveis. O maior beneficiário dessa realocação de receitas foi sem dúvida São Paulo, como o maior consumidor de energia elétrica e combustível e maior produtor industrial.
Os Estados exportadores de energia -Rio de Janeiro (petróleo), Paraná e Minas Gerais (eletricidade)- se queixam da alíquota zero nas suas exportações interestaduais de energia, que são integralmente tributadas em São Paulo, enquanto os produtos industriais que compram já vêm carregados de 12% do ICMS paulista. É uma perversa assimetria.
Como Deus não é totalmente injusto, compensou essas vantagens castigando São Paulo com dois governadores do PMDB, que levaram o Estado à falência. Mas mitigou a pena permitindo que dois tucanos -Fernando Henrique e Mário Covas- negociassem um acordo astronômico de consolidação de dívidas de R$ 50 bilhões (equivalente ao auxílio internacional ao México na crise da dívida de 1984). A dívida será federalizada em 30 anos, a juros subvencionados de 6%, ou seja, menos da metade do custo de rolagem da própria dívida federal.
Os pagamentos efetivos em dinheiro serão de R$ 40,3 bilhões em 360 prestações mensais, sendo o restante pago com a transferência de ativos estaduais "fraternalmente" avaliados. Cerca de metade da dívida (R$ 24,4 bilhões) é referente ao Banespa, representando o "custo da teimosia". Ao longo de mais de dois anos, porfiou valentemente o governador em continuar proprietário desse elefante branco, para o qual as soluções mais econômicas seriam a liquidação ou a privatização.
O governador Covas, um dos grandes líderes da Assembléia Constituinte de 1988 cujos desacertos nos custaram oito anos de estagnação, merece respeito pela austeridade fiscal que lhe permitiu reduzir as despesas do funcionalismo a 60% da receita. E merece críticas pela sua lentidão em abandonar cacoetes estatizantes.
Foi o que menos privatizou dentre os grandes Estados. Fracassaram as concessões rodoviárias (por contendas judiciais); a primeira privatização de eletricidade só ocorrerá em novembro próximo, após dois anos e 11 meses de governo; e o Estado retém ainda suas companhias de gás e saneamento. Até agora as privatizações paulistas se cifram em R$ 26 milhões, enquanto o Rio de Janeiro, pioneiro nesse processo modernizante, já privatizou ativos no valor de R$ 1,5 bilhão e Minas Gerais obteve receitas de R$ 1,2 bilhão.
O rico Estado de São Paulo não é aliás um exator negligente. Produzindo 1/3 do PIB nacional e representando 22% da população, sua receita de ICMS é 40% do total nacional. No período janeiro/junho de 1997, segundo dados da Unafisco, a arrecadação per capita em São Paulo foi de cerca de R$ 341, contra R$ 214 no Rio Grande do Sul, R$ 188 no Rio de Janeiro e R$ 158 em Minas Gerais!
O governo federal, por meio de recente portaria interministerial, concordou em dar suplementação adicional a alguns Estados que enfrentaram problemas específicos de transição. Se afrouxar mais, cedendo à pressão de quatro dos mais ricos membros da Federação, comprometerá os esforços de racionalização fiscal e redução do "custo Brasil".
A solução para a crise fiscal dos Estados estará na aprovação das reformas administrativas e previdenciária e, paralelamente, na privatização (geradora de receitas) e na terceirização (redutora de custos). O grande perigo de queda de receitas não provém da destributação das exportações e de bens de capital. Vem de uma eventual recessão, que poderia resultar precisamente do excesso da carga tributária. Alguns Estados não receberam desembolsos do "seguro de receita" simplesmente porque não apresentaram balancetes comprovando efetiva queda de arrecadação. Outros gostariam de medi-la, não em relação ao período consagrado na lei 87 após exaustivos debates, mas segundo um período favorável adrede escolhido.
No fundo, o que alguns Estados querem é o pagamento de um seguro de sinistro sem a ocorrência de sinistro; e interpretam o teto fixado em lei para o risco federal como "compromisso" de desembolso. A verdade é que o governo federal tem conseguido, sem prejudicar os objetivos fundamentais de incentivar a agricultura e reativar a produção de bens de capital, recompor, com alguma melhoria, a receita dos Estados anterior à lei. O resto é conversa de chorões...

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