São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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O "modelo chileno" vale o que custa?

HELMUT SCHWARZER

Vários artigos publicados nesta Folha têm defendido a introdução de um modelo de previdência com fundos de pensão privados, capitalizados, e contas-aposentadoria individualizadas. Essas propostas reproduzem o molde da reforma previdenciária chilena, efetuada em 1981 sob o governo Pinochet. O atual sistema público de previdência seria substituído ou fortemente diminuído em seu escopo.
Evidentemente, o assunto é da máxima importância e delicadeza por tocar os interesses de todos os membros da sociedade, seja como contribuintes ao fisco e à Previdência Social, seja como beneficiários atuais ou potenciais. Para captar a dimensão da questão, uma eventual privatização da Previdência Social brasileira envolveria somas de centenas de pontos percentuais do PIB -talvez o maior negócio da América Latina pós-1492.
É preocupante, nesse sentido, que se queira impor um consenso, como faz, em um dos artigos, este trecho: "Dez entre dez economistas concordam que é importante montar um sistema decente de previdência privada. Não só como alternativa ao sistema atual, mas como alavanca para a poupança interna (...)".
Os referidos economistas sugerem instrumentalizar o sistema de previdência para incrementar a taxa de poupança agregada, gerando mais investimentos e crescimento e menos dependência de poupança externa.
Não verificaremos se o "modelo chileno" é um remédio para o problema da dependência de poupança externa -fica a critério do leitor supor de onde viriam dólares para cobrir o desequilíbrio das contas externas. Vejamos, porém, se há a probabilidade de a promessa de maior poupança e investimento agregado ser cumprida.
Qualquer previdência contributiva é uma "máquina do tempo", "transferindo" poder de compra da nossa fase economicamente ativa para a passiva. Na verdade, ao não consumir uma parte da renda atual, eu "adquiro" o direito a uma parte da renda gerada pela próxima geração, quando eu estiver aposentado.
Isso vale não só para a previdência obrigatória -pública ou privada-, mas também para depósitos voluntários na poupança, investimento em filhos e outros. Resultam contratos de direito privado (fundo de pensão), público (Previdência Social) ou mesmo contratos morais (espero apoio dos filhos no futuro). Sempre dependo da geração seguinte e de sua vontade de honrar os diversos "contratos de aposentadoria".
A decisão (ou obrigação) de fazer poupança pessoal não significa que esta automaticamente seja investida na produção, gerando crescimento e -talvez- emprego. O automatismo prometido na proposta de capitalização baseia-se na "Lei de Say" ("a oferta cria sua própria procura"), que não é unanimidade entre economistas.
Embora, após longo percurso, parte da poupança acumulada possa vir a tornar-se investimento produtivo, inicialmente ela constituirá "poupança financeira" -comprando títulos securitizados no mercado financeiro, num jogo de troca de ativos.
Em fundos de pensão, o estoque de poupança financeira (e não taxa de poupança agregada) aumenta, enquanto houver mais receitas (contribuições e rendimento de inversão) do que despesas (gastos com benefícios e de administração).
Resulta que é "simples" gerenciar um sistema de fundos de pensão jovem e festejar a acumulação enquanto a taxa contribuintes-aposentados é favorável. A Previdência brasileira também foi "fácil" de administrar no passado, quando o excedente de arrecadação permitiu extravagâncias.
Quando vem a "maturidade" -a hora de pagar um significativo volume de aposentadorias-, passa a ser grande a tentação de fundar um sistema novo, no qual a "taxa de retorno por contribuição paga" para contribuintes jovens será maior. A dívida para com os contribuintes e aposentados do sistema antigo é repassada ao Tesouro -uma enorme privatização de lucros e socialização de prejuízos. Essas são as "inovações" de Chile, Argentina, Peru e outros.
Poupança "excedente" só surgirá se a troca de ativos fundos de pensão-Estado para o financiamento da transição for moderada. Isso depende da eventual desvalorização da dívida anterior e de como se desenha o seu fluxo de resgate.
O investimento produtivo da poupança financeira excedente gerada necessita, antes de mais nada, que existam perspectivas de lucro na produção e mercados financeiros eficientes, que a aloquem. Se para cobrir a transição formos convocados a pagar mais impostos ou a comprar serviços antes gratuitos (saúde ou educação, por exemplo), a renda disponível e a poupança voluntária diminuem.
No Chile, ninguém consegue provar que a reforma tenha aumentado a taxa de poupança agregada. Além de análises carnavalescas, também há avaliações comedidas, elaboradas pelas próprias superintendências de fundos de pensão da Argentina, Chile e Peru ou no Fundo Monetário Internacional, que expressamente recomendam frear o otimismo.
Uma recente tese de PhD concluiu que o efeito líquido da reforma previdenciária sobre a taxa de poupança agregada no Chile foi negativo (-2,6% do PIB/ano). Outro estudo, da Cepal, suspeita que a chave para a evolução positiva da poupança agregada chilena seja a reforma tributária de meados dos anos 80.
Ora, se quanto ao Chile há toda essa dúvida, onde, de acordo com o Banco Mundial, a dívida implícita do sistema antigo era estimada em 126% do PIB, o que dizer do Brasil, no qual, segundo recente estudo da Fipe/USP para a Fiesp, a dívida implícita alcança R$ 1,92 trilhão, ou seja, "aproximadamente três vezes o PIB"?
Resta esperar que André Lara Resende, que estuda "alternativas" para a Previdência, não apenas procure identificar quem "descascará o abacaxi" da transição, mas sim se é sensato perseguir na reforma previdenciária o objetivo do aumento da taxa de poupança agregada por acumulação de poupança financeira mandatória.
Não há dúvida de que urge recolocar nossa Previdência atual em equilíbrio financeiro e atuarial. A "solução chilena" parece não ser a mais eficiente. Mas, com certeza, ela é caríssima e um meganegócio para o setor financeiro à custa do contribuinte.

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