São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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O abandono das nostalgias

RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Trovar Claro" é a mais recente coletânea de Paulo Henriques Britto, que estreou, como poeta, em 1982, com "Liturgia da Matéria", seguido da reunião "Mínima Lírica" (1989), pela coleção "Claro Enigma", dirigida pelo também poeta e professor Augusto Massi.
Paulo Henriques tem extensa contribuição como tradutor de, por exemplo, Jack Kerouac, Allen Ginsberg e Bob Dylan. Seu mais conhecido trabalho, nesta área, de menção obrigatória, é "Poemas" (1987), de Wallace Stevens (1879/1995), um "clássico" da poesia moderna mundial -enfrentado, pelo tradutor, com cuidado, em suas peças mais difíceis e progressivas.
Henriques foi, há pouco, incluído, ao lado de Ana Cristina Cesar, Carlos Drummond de Andrade, Chacal, Claudia Roquette-Pinto (a quem lançou, no Rio, com o prefácio de "Os Dias Gagos", 1991), entre outros, numa antologia de poesia brasileira, organizada por Mark Smith-Soto, para a "International Poetry Review", da Universidade da Carolina do Norte, EUA.
O título "Trovar Claro" parece funcionar, nesse caso, como uma declaração de intenções: ele se opõe, dentro da tradição, remota, do Ocidente, ao chamado "trobar clus, escur" ou "cobert" -o cantar fechado ou obscuro. O canto, nítido e visível, se conjuga, ao que tudo indica, no novo conjunto, com a idéia e procura, por assim dizer, do "poético".
A poesia de Paulo Henriques não se filia às dicções mais experimentais brasileiras e suas fórmulas -o que, neste segundo caso, é sinal de saúde.
Seu diálogo se dá ora com a voz de Augusto dos Anjos, nos jogos de kitsch, ora com João Cabral, nas rimas toantes e na metapoesia (mas, quase nunca, na dialética da composição), como em: "E se esta página inaugural/ negar-te a façanha de um verso,/ um gesto rápido há de restaurar/ a virgindade do caderno...".
Mas, principalmente, se propõe, seu diálogo, com o modernismo brasileiro, em suas evidências, e com certas "falas" da Poesia Marginal (anos 70): "Nada, aliás, é necessariamente/ nada) Um automóvel pigarreia e passa...".
"Trovar Claro" busca estrutura e fôlego em sua organização e desenvolvimento. Todavia, para mim, as melhores peças se firmam quando a "procura" do canto visível e luminoso, do poético, se adensa em palavras mais obscuras e, paradoxalmente, mais reveladoras -afinadas com as percepções do autor, como em muitos momentos "perdidos", entre vocábulos desnecessários ou explicitadores, desnecessariamente, daquilo que se viu ou se viveu, como a linha "e todas as maçãs assassinadas" precedida de: "Aqui termina o sonho. Fim das névoas,/ caramelos e almofadas formidáveis./ Daqui pra frente, as portas sem remédio...".
Ao "escapar" do poético, como nos versos que a seguir também transcrevo ("Naturalmente, enquanto isso a tarde/ se apaga, anêmica, despercebida,/ e vem a noite, com seu negro alarde, Desde o começo a causa era perdida"), o poeta encontra, mais contundente, a própria poesia, como em "Pessoana", um dos melhores de todo o conjunto: "Mas tão logo identifico/ o não lugar onde estou/ decido que ali não fico/ De ponto a ponto rabisco/ o mapa de onde não vou...".
Paulo Henriques melhor se exprime, a meu ver, quando deixa de, intencionalmente, perseguir a expressão e/ou deixa de "ler" a tradição e, assim, se abre, abandonando nostalgias, para as coisas em si: "ali na parede, o interruptor/ da lâmpada que lança sobre tudo/ a cal abrupta da realidade...".
Entre os trechos nos quais mundo e palavra se afiam, despojados, mencionaria a boa série "Até Segunda Ordem", em que narrativa, coloquialidade, anotações casuais se combinam com uma visão crítica das coisas, quase neutralizando, ao somar ironia, o efeito um tanto convencional dos metros fixos e sonetos, uma das características da obra deste autor.
"Trovar Claro" mostra que a poesia brasileira contemporânea é feita de variedade e não, como querem os dogmáticos, de lá e de cá, de "verdades".

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