São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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Insanos de um outro hospício

RENATO SZTUTMAM
INSANOS DE UM OUTRO HOSPÍCIO

Como diferenciar um "louco de hospício" de um louco "como a gente"? Qual a fronteira entre a paranóia e a realidade?
Afinal, de que maneira definir a loucura em uma sociedade tão contraditória como a nossa? Para discutir estas questões que dizem respeito ao tema da "loucura", a série "Diálogos Impertinentes" do último 26 de agosto contou com a presença do psicanalista e ensaísta Contardo Calligaris e do ator e produtor Paulo Autran.
O debate convergiu, sempre que possível, para o humor. O mediador Mário Sério Cortela, professor do departamento de teologia e ciências da religião da PUC-SP, abriu a discussão dirigindo a seguinte pergunta a Calligaris: "Você acha que Paulo Autran é louco?". Quase inibido, o psicanalista respondeu: "Um pouco de loucura é sempre necessário". Minutos depois, o poeta Nelson Ascher, também mediador, perguntaria a Paulo Autran se ele já havia interpretado um louco: "Sim, um analista. Um analista em crise".
As brincadeiras afastaram o debate de um domínio puramente clínico. A loucura foi, no mais das vezes, examinada como expressão recorrente no vocabulário do senso comum.
O próprio Calligaris reconheceu: "A loucura intervém na fala cotidiana o tempo inteiro. Eu sou italiano. Então quantas vezes não dizemos 'Mas o quê? você está maluco?' ".
A relação entre arte e loucura foi bastante tematizada, não tendo sido poupadas menções a Van Gogh e ao Marquês de Sade. Segundo Paulo Autran, avesso ao conformismo, "todo artista é louco no sentido de fugir do padrão normal". Para ele, a criação exige do artista a perda da sobriedade absoluta.
Calligaris, apesar de reiterar essa visão "positiva" da loucura, valeu-se de algumas ressalvas. "Jean-Jacques Rousseau era paranóico, era louco; Wittgenstein era louco sem dúvida alguma, mas ser louco não garante a genialidade", concluiu.
Mais adiante, os fatores "negativos" da questão foram avaliados. A consideração do tema do descontrole e da correlação de loucura e demência apontou a necessidade de definições mais clínicas. Calligaris fez referência ao "louco propriamente dito" -se é que lhe cabe esta denominação- como "uma pessoa cuja orientação na vida é fundamentalmente desconectada dos sistemas de referência socialmente compartilhados". "Essa pessoa se vê profundamente tomada pela tentativa de inventar para si um sentido que vai ser quase sempre só o dela", disse.
Um dos assuntos mais tocados durante o debate foi o da patologia na vida sexual. "Apesar de tudo que a medicina do século 19 fez para tornar patológicas algumas condutas sexuais, a única posição correta é considerar que as variantes do desejo sexual não fazem parte da loucura e, de uma certa forma, nunca são patológicas", esclareceu Contardo Calligaris.
"Chamamos de tarado aquele que tem opção diferente da nossa", acrescenta Paulo Autran. "Dizem que o homossexual é louco porque gosta do mesmo sexo quando o normal é gostar do outro sexo. Agora eu pergunto: o homem que gosta só de mulher loura, ele é normal?".
Ainda no campo da sexualidade, Calligaris não hesitou em responder uma pergunta do público sobre os efeitos psíquicos da introdução de novas formas de comunicação interpessoal. Interpretou, por exemplo, sem preconceitos e com otimismo, o advento do "sexo virtual" praticado via Internet, alegando que não é identificável nessa prática qualquer traço de patologia.
"Sempre achei que o sexo é virtual porque, apesar da presença do parceiro, cada um está fundamentalmente na própria fantasia e procura fazê-la funcionar com o outro que está um pouco na dele. O sexo é essa espécie de lugar onde tem duas ou mais pessoas numa cama e, evidentemente, é a fantasia sobrevoando. Finalmente, não acho o sexo virtual muito diferente do sexo real. Acho que precisamos pegar as novidades tecnológicas e incorporá-las à nossa vida psíquica da maneira que podemos", disse Calligaris.

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