São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Anjos de nosso tempo

MARCOS ALENCAR
DO UNIVERSO ONLINE

"A Lenda dos Anjos" ("La Légende des Anges", 1993), de Michel Serres, lançado recentemente no Brasil pela editora Aleph, enfrenta o preconceito gerado pela moda dos anjinhos. Os que poderiam encontrar uma leitura instigante sobre comunicação não adquirem o livro porque associam o título à moda, e os que se identificam com a moda não o compram porque, já nas primeiras páginas, se desinteressam pela sua complexidade filosófica.
Na verdade, "A Lenda dos Anjos" não é um livro fácil. Trata-se de um ensaio sobre a comunicação na era da virtualização, do planeta em rede, do tempo acelerado, da informação desdobrada, das mídias triunfantes e da tecnociência. Pretende repensar significantes e significados dessa megarrede de informação que nos passa praticamente despercebida no cotidiano.
Ao mesmo tempo, é uma reflexão sobre a história da comunicação. Desde Hermes, mensageiro dos antigos deuses gregos, a quem Serres já havia se referido em outro livro seu ("Hermes, Uma Filosofia das Ciências"), até a atualidade, o filósofo transfigura o imaginário dos anjos.
Quem são os anjos, hoje? O conjunto das mensagens e dos mensageiros que circulam pelo mundo, o grande hipertexto móvel, labiríntico, de muitos formatos, e suas milhares de relações. Todos eles, anjos mensageiros, laicizados, de nosso tempo.
Paradoxalmente, os personagens do livro são humanos. O universo comum é simbolizado pelo aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, onde Pia, uma médica da enfermaria do aeroporto, e Pantope, um inspetor da companhia aérea Air France, travam um diálogo filosófico a respeito de nosso tempo, discorrendo sobre história, sociologia, cosmologia, física, informática e astronomia.
Dividido em sete capítulos, o livro de 283 páginas é totalmente ilustrado, ora com reproduções de obras de arte, ora com fotos, como a da favela da Rocinha, no Rio, de astronautas, de fenômenos naturais. As imagens não são decorativas e integram-se ao texto, explicando-o, criando novas relações.
Serres propõe que, ao invés de pensarmos os sistemas comunicacionais como uma rede de coisas ou seres independentes, passemos a pensá-los como caminhos entrelaçados, em que interage um grande número de atores humanos, biológicos e técnicos.
Que redes tecem nosso universo? Aquelas que nós, os humanos, criamos, em nossas mais variadas comunicações, mas também a do mundo das coisas e a do mundo divino. São esses três níveis, dissociados de forma contundente pela modernidade, que Serres deseja reunir numa mesma linguagem.
Entre ficção e filosofia, o livro propicia antes de tudo uma prazerosa reflexão. Leva a refletir na dimensão coletiva da existência a partir das mudanças que estamos testemunhando. É um convite à reinvenção da cultura, a que nos tornemos personagens ativos na construção de nossos destinos.

Texto Anterior: Cartograma global
Próximo Texto: O desafio da mestiçagem
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.