São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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Noviças, graças a Deus

DEBORAH GIANNINI; MARIANA SGARIONI

Vocação leva meninas de 17 anos a trocarem festas, namorados, carreira por castidade e obediência
POR DEBORAH GIANNINI E MARIANA SGARIONI
Todos os anos, pelo menos 1.500 garotas em idade de prestar vestibular deixam suas casas em busca de uma outra "profissão": se tornarem freiras.
Aos 17 anos, decidem que estão prontas para esquecer o convívio familiar, namoros, festas, roupas da moda e carreira para se dedicarem à Igreja Católica.
Fazem votos de castidade, pobreza e obediência. E passam a estar disponíveis para qualquer missão -que pode ser ensinar crianças pobres nas periferias, partir para uma ação humanitária na África ou apenas se trancar em um convento com a tarefa de passar o dia em oração e falar o mínimo possível.
Mas o que leva adolescentes, a quatro anos da virada do milênio, a renunciarem às suas vidas pessoais em nome de uma caridade que pode, inclusive, ser feita desvinculada da igreja?
A Revista entrevistou 30 noviças, e a resposta foi sempre a mesma: as dúvidas, tão comuns nas adolescentes, inexistem neste caso, e o "chamado é muito forte".
"Sem dúvida, é uma fase muito difícil. No mundo de hoje, quem quer ser irmã? Eu estava me preparando para prestar faculdade, trabalhava em um escritório de administração de empresas. Queria ser advogada, mas não tinha certeza. Um dia fui assistir a uma missa, vi as freiras trabalhando, rezando. Era aquilo que eu queria. É um chamado muito especial", conta Maria Andrea, 19, noviça da Instituição Secular Irmãs de Maria de Shoenstatt.
Sandra Marangoni, 19, da congregação Imaculada Conceição, antes de se decidir pela vida religiosa, namorava um garoto da sua idade (na época tinha 15 anos) havia oito meses e pensava em casar-se e ter filhos. Mais uma vez, o contato com as freiras da comunidade foi determinante para a sua decisão.
"Era bom estar ao lado do meu namorado, mas só isso não preenchia a minha vida. Eu me imaginava casada e achava isso muito restrito. Não foi difícil decidir me tornar uma irmã. Sabia que teria de renunciar a namorado, maquiagem e coisas supérfluas. Mas era essa vida que eu queria", diz Sandra, que hoje cursa o postulantado, segunda fase para se tornar uma freira (veja texto à pág. 13), na casa do noviciado de sua congregação.
"Vida consagrada"
A história de Sandra não é diferente das outras noviças. Em geral, a vida antes do convento era igual à de qualquer menina dessa idade: festas, namoros, vaidade e ambição profissional.
Valéria, 21, também Maria de Shoenstatt, hoje vestida com um hábito azul-marinho até os pés e com o véu que esconde completamente seus cabelos, costumava frequentar clubes e ir a festas nos finais de semana.
Marta Fernanda Costa e Silva, 23, da congregação das Irmãs de Santa Dorothéia de Frassinatti, sonhava em ser detetive policial. Rosely de Fátima Moraes Barbosa, 24, das Pequenas Irmãs Missionárias da Caridade, trabalhava como enfermeira em um hospital em Araguaíma, no Tocantins. E C.B., 26, uma monja beneditina que vive enclausurada no mosteiro Nossa Senhora da Paz, em Itapecerica da Serra, era atendente em um cartório no centro de São Paulo.
Para todas elas, no entanto, "faltava alguma coisa" na idéia de apenas levar uma vida comum. "Fazia o que as meninas da minha idade faziam e até me divertia nas festas, mas saía de lá com o sentimento de que não era isso que me completava", afirma Valéria.
Diferentemente da grande maioria das pessoas, Rosely achava seu horário de trabalho muito curto e queria uma dedicação ao outro de 24 horas.
Ainda mais radical, C.B. sentiu a necessidade de se afastar de qualquer convívio social para ter uma "vida consagrada".
"Não há uma explicação para largar tudo em nome da vida religiosa. Sempre pensei em ser missionária. Desde os 14 anos, era engajada na igreja. É apenas vocação", diz Nélia Maria Mendes Vieira, 21, da congregação das irmãs de Santa Dorothéia de Frassinatti.
Vocação
Seguindo a explicação da vocação, tudo parece muito simples. Assim como 180 garotas passam todos os anos no vestibular da Fuvest para medicina, outras 1.500 entram em conventos -isso há pelo menos duas décadas.
A partir daí vem um período de adaptação, depois aulas, formação e, finalmente, a confirmação, que pode levar até nove anos. Hoje são ao todo 38.012 religiosas no Brasil, número que, ao contrário da Europa, onde "as vocações são escassas", também se mantém firme há 20 anos. "Na Europa, não há miséria e existem cada vez menos jovens", explica a formadora de noviças de Schoenstatt, irmã Dileta.
Na verdade, as primeiras complicações da vida de noviça já aparecem no próprio "descobrimento" dessa vocação. O que há alguns anos era motivo de orgulho para a família -ter uma filha ou um filho ligados à Igreja Católica- hoje passou a ser perturbador.
Quando irmã Ana Lúcia, 24, noviça de Schoenstatt, contou aos pais que queria ser freira, a reação não poderia ser pior. "Para minha mãe, foi a morte. Sou filha única, a única herdeira, como ela costuma dizer, foi muito difícil de aceitar."
A idéia inicial é de que há algo errado com a família. A pergunta feita pela mãe de Gabriela, 23, da mesma congregação, foi "se lhe faltava alguma coisa dentro de casa".
Em seguida, busca-se uma explicação em algum tipo de desilusão, seja ela amorosa, profissional ou financeira.
"As pessoas não conseguem entender, porque acham que somos muito novas, temos uma vida inteira pela frente, a possibilidade de uma faculdade. Não compreendem que o que ansiamos é algo maior", diz Gabriela.
Para as próprias noviças, se separar dos pais é a primeira e maior prova. "É difícil de desprender, tenho muita saudade. Sei, por exemplo, que um primo meu nasceu, mas não posso acompanhar o seu crescimento", conta Maria Vitória, 22, nascida em Freistal, na Alemanha, e há um ano no Brasil.
Regras e horários
Ao entrar para o convento, a maioria das noviças muda de nome, rejeita ter uma vida pessoal, só pode visitar a família uma vez por ano e tem de se adaptar às novas regras.
Uma dessas regras é esquecer que são adolescentes ou pelo menos tentar adaptar esse período à vida religiosa. A chegada do papa João Paulo 2º ao Brasil, por exemplo, é tão aguardada pelas noviças como a de um superastro da música pop.
"Elas ainda são muito novas. Têm muitos aspectos a trabalhar, como a maturidade. Muitas vezes, dão gargalhadas em momentos indevidos", afirma irmã Lourdes, formadora de noviças da Congregação de Santa Dorothéia de Frassinatti.
Outra adaptação se refere aos horários, extremamente rígidos. Em geral, o dia começa entre 4h30 e 5h e termina entre 21h e 22h. Televisão, só nos finais de semana e apenas nas congregações que permitem.
Entre as irmãs carmelitas, uma das ordens mais rígidas, as obrigações se limitam a orações e tarefas domésticas. Elas ficam enclausuradas dentro de um convento na avenida Jabaquara e só podem sair para ir ao médico. A visita aos pais é também proibida, exceto em casos de doença grave. E quem quiser visitá-las, é obrigado a falar por trás de uma grade, sem tocá-las.
Na sala de espera, já se pode observar os primeiros "detalhes" de uma vida sem vaidade: o mancebo de madeira teve o espelho retirado. "Não temos espelhos aqui dentro", explica a irmã Terezinha, que está no convento há 36 anos.
"Nossa motivação é viver para Deus. Aqui é como se fosse uma fortaleza. Temos o dia apertado, com serviços de lavanderia, cozinha, jardim e orações. Não temos tempo para nada. As noviças devem falar o mínimo possível para evitar desentendimentos e discórdias", diz.
A única "mordomia" que vão aceitar nos próximos dias é alugar uma televisão para assistir à visita do papa ao Brasil.
Em outras congregações, a vida religiosa é bem mais flexível. As irmãs Dorothéias de Frassinatti passam os dias trabalhando em escolas e em favelas. Nos finais de semana, têm descanso: "almoçam fora" (preparam a mesa no jardim), alugam fitas de vídeo como "Ninguém Segura Este Bebê" ou assistem à programação de uma TV a cabo.
Segundo Eduardo da Cruz, professor da pós-graduação em Ciências da Religião da PUC, de São Paulo, esses são alguns dos exemplos de que a vida das religiosas está se modernizando. "No Brasil atual, não há como viver dentro de conventos esperando que os pobres batam em sua porta, as freiras têm de sair às ruas para fazer caridade", afirma Cruz.
Uma das congregações mais "liberais", a de Santo Agostinho -a mesma da irmã Ivone Gebara, que se tornou polêmica por suas declarações a respeito do aborto- permite quase tudo.
Maquiagem, bijuterias, calça jeans, perfumes, cerveja e até cigarro não estão proibidos. Cada freira traça sua missão. Também não há madres superioras ou supervisoras, mas vigárias que funcionam como conselheiras. A única restrição é ainda o sexo.
Representante dessa congregação, a maranhense Maria Lenir Albuquerque, 40, não lembra nem de longe uma freira. Em 15 anos de vida religiosa, nunca usou hábito e nem sabe o que é morar em um convento: divide uma casa com outras irmãs. É vaidosa, usa batom, bijuterias da moda e calças compridas. "Gosto de me sentir bonita como todas as mulheres. Por que, então, deveria esconder minha vaidade?", diz.
Lenir é, inclusive, paquerada, mas faz questão de afirmar que não corresponde às expectativas de seus pretendentes. Oportunidade, nunca faltou.
Ela se diverte contando que, certa vez, foi pedida em namoro por um seminarista. "Estávamos tocando violão e tomando uma cervejinha, quando eu expliquei a ele que meu caminho era outro."
Apenas o assunto sexualidade a deixa ruborizada. "Sou uma mulher normal, tenho vontade como qualquer outra. Mas procuro canalizar isso para meu projeto de trabalho e para a minha fé", diz. Como missão atual, ela dirige um restaurante, que montou junto com moradores de rua, no centro da cidade. "A idéia é dar trabalho e responsabilidade aos pobres carentes. Hoje são eles que inclusive cuidam do dinheiro no restaurante."
Mais radical
Mas até que ponto chega essa "modernização"? Sônia Batagin, 41, da congregação das pastorinhas, dá aulas de Sagrada Escritura para o clero e defende que existe hoje uma igualdade entre freiras e padres no que diz respeito à "defesa da vida do povo".
"As irmãs hoje saem às ruas e assumem a realidade que as cerca. Lutam em nome da defesa da vida do povo, que é quem mais sofre com o neoliberalismo da sociedade atual", diz.
Na prática, passaram da vida dentro dos conventos para a caridade nas ruas. Mas limitam seu trabalho fica por aí. Ainda são proibidas de comentar assuntos como o aborto. A própria Ivone Gebara foi temporariamente afastada da congregação após falar sobre o aborto.
A vinda do papa ao Brasil gera uma certa euforia nas irmãs, mas elas evitam discutir o motivo dessa visita.
"As idéias da igreja muitas vezes estão distantes da realidade da favela, do cortiço, da ocupação de terra. O papa vem ao Brasil para discutir a família, mas que família é essa? A de um favelado, por exemplo, é só a mãe com os cinco filhos, mas a igreja discute a família estruturada", diz Iracema da Silva, 56, ex-freira da ordem das Apóstolas do Coração de Jesus.
Iracema decidiu abandonar a igreja para ter "uma vida mais radical": entrar de cabeça na ajuda aos favelados da zona leste, sem estar presa a regras.
"Para conseguir levar meu trabalho até o fim, tive de me desligar da igreja. Quando era freira, nunca conseguia terminar um projeto porque sempre apareciam outras missões ou transferências. Descobri que para dedicar minha vida a Deus não precisava estar ligada oficialmente à instituição", diz.
A essência da vida de Iracema não mudou. Seguindo sua vocação, ela ainda não usa batom, calças compridas, nem faz sexo. O que mudou foi sua posição perante a igreja e seus assuntos polêmicos.
Para Iracema, não há mais medo em falar do papa ou de aborto. "Tudo é muito polêmico, muito difícil. Em relação ao aborto, o que é melhor? Não se pode tomar qualquer posicionamento de forma imatura. Não dá para dizer se é a favor ou contra. Sou contra é a pena de morte."

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