São Paulo, segunda-feira, 29 de setembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Pintura parece macia

LEDA CATUNDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que é que nós, aqui do alto de 1997, debruçados como estamos e já quase caindo para o próximo século, podemos enxergar na pintura canibal dos anos 20 de Tarsila? Dentro do Brasil problemão, quais das preocupações e reivindicações modernistas permaneceram?
Questões relativas a nossa cultura e identidade nacional nunca suficientemente atendidas, debatidas, estudadas ou mostradas. Pontos que resistiram à passagem de dezenas e dezenas de anos continuam aqui entre nós, perduram no pensamento artístico e encontram ainda algum reflexo na realidade cultural contemporânea.
Vale ressaltar que, do Brasil de outrora para o de agora, observa-se um deslocamento na preocupação da busca de uma identidade nacional coerente em favor de uma maior comunicação e compreensão de outras culturas.
Essa tentativa de compreensão está na TV, nas agências internacionais de informação e nas publicações de arte, encontradas em bancas e em livrarias na Internet, e sempre acaba obedecendo as relações entre cultura dominante e poder econômico.
Como sempre acontece em arte, os entornos e pensamentos atrelados ao objeto artístico na ocasião de sua produção se modificam e também podem alcançar alguma perpetuação pelo esforço dos críticos e historiadores de arte em resgatá-los.
Por sua vez, a imagem, no caso da pintura, permanece intocada e sobre ela nossos olhos, livres, podem passear, fazendo leituras e associações espontâneas.
Macias, assim parecem as figuras nas pinturas de Tarsila. Femininas e, para usar um termo da época, brejeiras. Paisagens arredondadas, por vezes com figuras humanas deformadas por escorço, o "Abaporu" que foi o ícone inspirador do "Manifesto Antropófago".
Nessas pinturas pode-se observar a curiosa ausência de espinhos nos cactos, que surgem também macios e plácidos ao lado dos outros volumes.
A vegetação nas telas de Tarsila parece inspirada nas formas das suculentas, família de plantas das cactáceas, que são geralmente gordinhas. Entre as mais populares estão as rosas-de-pedra e o dedos-de-moça.
Essa impressão de volume se dá pelo uso constante de um dégradé na construção das figuras e pela variação bem demarcada de cada cor, indo do seu tom mais forte para o mais claro.
Mas a associação desses supostos volumes com uma impressão de maciez, como se houvesse um "almofadamento" da natureza, é em parte muito reforçado pela escolha das cores.
Além dos verdes sempre presentes, há também rosas, laranjas, amarelos e azuis claro, todas cores em tons caseiros, ou como enxergou a crítica: uma busca da cor brasileira ou caipira.
Então, as formas, as cores e também os assuntos, como o riacho, os laguinhos, a fazenda com as palmeiras, o sol como uma rodela de laranja no céu, a lua, o estranho ovo e a cobra grande, tudo isso se mistura e o talento da artista, evocando nossa memória comum, nos traz para a paisagem de um sonho do Brasil. Onde ouvem-se trechos das cantigas como: "Cunhatã te esconde, lá vem a cobra grande á...á..." ou "...foi Boto sinhá, foi Boto sinhô...".
Esse incrível poder de transporte, do ser do mundo real para dentro do universo do artista, está contido na obra de Tarsila e perdura independente da existência da própria autora, dos ditos de sua época e mesmo dos de agora.

Texto Anterior: Mostra prova que Tarsila é moderna
Próximo Texto: Beleza marcou como a arte
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.