São Paulo, segunda-feira, 29 de setembro de 1997
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Scilingo acusa 'agentes' de cortar seu rosto

DE BUENOS AIRES

Duas décadas depois de participar dos "vôos da morte", Adolfo Scilingo se considera culpado e diz que se arrependeu de ter participado de atos de tortura durante o regime militar argentino, que deixou 30 mil pessoas desaparecidas.
Ele disse à Folha que decidiu denunciar as operações ocorridas na Esma porque "tudo foi feito dentro de uma lógica militar".
Scilingo afirmou também que teve "uma crise de consciência agravada pelo silêncio generalizado sobre o tema".
"Não éramos uma quadrilha de delinquentes ou pistoleiros. As ações foram feitas pela Marinha argentina, de forma institucional", afirma.
Scilingo declara que "o silêncio total e absoluto" dos seus superiores em relação ao que foi feito com os prisioneiros políticos aumentou seu sentimento de culpa.
"Como isso podia permanecer oculto ao mesmo tempo em que, diariamente, as pessoas perguntavam sobre seus familiares desaparecidos?", questiona. "Não seguimos em uma guerra, e os desaparecidos não podem continuar sendo encarados como inimigos."
Para ele, a Marinha "tem medo de dizer a verdade porque ela é vergonhosa. Mas o mais vergonhoso é ocultar o que aconteceu".
O ex-capitão de corveta da Marinha argentina se considera culpado "por ter aceito que estava em uma guerra e por não analisar se o que estavam dizendo era certo ou errado".
"Acreditei cegamente que a morte era a metodologia ideal de combate e que estávamos fazendo o melhor para o país, mas assumo a responsabilidade sobre meus atos. Por isso creio que tenho culpa total sobre tudo o que fiz", disse Scilingo.
Assim como a maioria dos oficiais argentinos envolvidos na "guerra suja", Scilingo se livrou da prisão graças à Lei do Ponto Final e à Lei da Obediência Devida.
Essas duas leis foram encaminhadas ao Congresso pelo ex-presidente Raúl Alfonsín, que assumiu o controle do país após a derrocada do regime militar, em 1983.
Aprovadas pelo Congresso em 1988, elas interromperam os processos e os julgamentos contra oficiais que torturam ou mataram prisioneiros políticos.
Em 1984, Alfonsín ordenou a prisão dos comandantes das juntas militares que governaram o país. Entre 1985 e 1986, cinco dos nove membros dessa juntas foram condenados a penas que variaram de quatro anos à prisão perpétua.
Em 1990, o presidente Carlos Menem -que sucedeu Alfonsín- indultou os chefes militares e conquistou a confiança dos principais comandantes das Forças Armadas do país.
"Se algumas pessoas consideram correto o que foi feito, é preciso dizê-lo e discutir. Os familiares dos desaparecidos querem saber o que se passou. É um direito que eles têm", afirma.
Sequestro e morte
Devido às suas denúncias e à posição de silêncio adotada pela Marinha argentina, Scilingo afirma que tem medo de morrer.
No último dia 11, ele apareceu com diversas marcas de faca no rosto e afirmou ter sido sequestrado "por agentes do governo".
As marcas na sua cara seriam as iniciais de jornalistas argentinos que investigam a questão dos desaparecidos políticos durante o regime militar.
"Esperei o momento de morrer. A atitude da Marinha nesse momento é mafiosa, pois não quer assumir sua responsabilidade. E os mafiosos que não adaptam sua vida aos códigos da organização são reprimidos com a morte. É como se fosse 'O Poderoso Chefão'", afirma.

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