São Paulo, sábado, 4 de abril de 1998
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cupins e caifazes

RUBENS RICUPERO

Os leitores devem ter ficado perplexos diante do título. Há pouco mais de um século, no entanto, essas expressões eram tão conhecidas como é hoje a sigla MST. Aliás, de certa forma eram os equivalentes do Movimento dos Sem Terra daquele tempo. O Clube do Cupim, de Recife, e sobretudo os caifases de Antonio Bento, em São Paulo, foram sociedades mais ou menos secretas que, desesperando do nosso inveterado hábito de transições "lentas, graduais e seguras", mas principalmente intermináveis, resolveram passar à ação direta na luta pela abolição. Começaram a insuflar a revolta das senzalas, organizaram fugas maciças de escravos, aplicaram aos capitães do mato o remédio da violência que eles gostavam de ministrar a escravos indefesos.
Foi esse movimento que desorganizou a atividade produtiva e desfechou o golpe mortal na escravidão. Em 1887, quando o Clube Militar pediu à princesa regente que os oficiais do Exército fossem dispensados da desonrosa caça aos escravos, o jogo tinha acabado. Incapaz de fazer respeitar a escravidão, confrontado com quilombos como o do Jabaquara, em Santos, com mais de 10 mil foragidos, não restava ao governo senão curvar-se perante a abolição de fato e convertê-la em emancipação de direito.
Como tudo isso parece distante, os nomes e fatos engolidos pelo poço sem fundo da memória! Quem lembra hoje de Antonio Bento, na Igreja de Nossa Senhora dos Remédios em São Paulo, sede da Confraria dos Homens Negros? Não obstante, há mais de um ponto comum entre abolicionismo e reforma agrária, entre terra e liberdade.
Joaquim Nabuco foi dos raros que percebeu essa complementaridade. Na "Campanha abolicionista no Recife", queixando-se da falta de apoio por parte dos agricultores sem terra, exclama: "Eles não compreendem que o abolicionismo é o começo da propriedade do lavrador". No mesmo discurso havia dito: "estamos lutando para dar-lhes uma independência honesta, algumas braças de terra que eles possam cultivar como próprias".
Nabuco, contudo, era contraditório. Reclamava da passividade dos homens livres sem terra. Ao mesmo tempo, como quase todos os dirigentes brasileiros, inclusive os de agora, tinha medo da mobilização, necessária para gerar o apoio popular. "É no Parlamento", dizia, "não em fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades que se há de ganhar ou perder a causa da liberdade".
O problema é que o Parlamento e o sistema político eram desesperadoramente lentos. Após medidas parciais, em grande parte ineficazes, como as leis do Ventre Livre e dos Sexagenários, tendiam a recair na inércia da qual só saíam sob a pressão dos fatos.
Fomos por isso os últimos a acabar com o tráfico e detemos o triste título de derradeiro país a abolir a escravidão na América, três anos após Cuba, ainda colônia espanhola. Em 1867, quando o imperador consultou o Conselho de Estado sobre a supressão do "elemento servil", o único conselheiro que ousou sugerir data para adotar a medida sem destruir a lavoura propôs o ano de 1930, quando os últimos cativos seriam remidos pela metade do preço...
Em relação ao problema agrário, a concentração da propriedade começa com as sesmarias, prossegue com a Lei de Terras da monarquia, com os "grileiros" do tempo de Monteiro Lobato, os conflitos sangrentos da época de Lupion no Paraná. É um passado de esbulhos, de apropriação criminosa do patrimônio público por particulares, de distribuição ilegal por governadores de terras devolutas a protegidos políticos. O Congresso, como revelou estudo do meu colega, professor David Fleischer, da UnB, tem visto aumentar em todas as legislaturas a participação de fazendeiros, se olharmos não para a profissão declarada, mas para a fonte de renda principal. Não admira, assim, que o Congresso da Constituinte e da redemocratização tenha votado disposições que, na opinião do grande especialista agrário José Gomes da Silva, são dez vezes piores que o Estatuto da Terra do marechal Castelo Branco.
Há outros paralelos. Afirmava-se que a abolição do tráfico e da escravatura traria a ruína da economia e foi o oposto o que se viu. Como em relação à abolição, os inimigos da reforma agrária alegam ou que ela desorganizará a agricultura e a economia ou que é desnecessária, pois o problema desaparecerá por si mesmo com o tempo e a transição demográfica. Ao contrário do que se previa, porém, a modernização agrícola, o "agribusiness", a soja, a cana, não aliviaram a miséria rural, mas a agravaram, expulsando centenas de milhares do Paraná, do Rio Grande, criando cinturões cancerosos de "bóias frias" até em torno de cidades médias e pequenas do interior de São Paulo. Como os escravos, que preferiram a fuga à "solução" gradualista, os excluídos do campo se recusaram a morrer em silêncio, decepcionando os tecnocratas defensores da "modernização" sem justiça. Pior, onde estão os empregos industriais que deveriam absorver as massas expulsas das fazendas tecnificadas?
A emergência do movimento dos trabalhadores rurais é um dos fenômenos mais importantes da história brasileira, desmistificando toda uma tradição de suposta passividade e anomia do nosso povo. Revela um problema real gravíssimo, a incomensurável miséria do campo. Pois ninguém, por grande agitador que seja, é capaz de levar dezenas de milhares de pessoas à ação organizada, a fazer homens e mulheres afrontar a brutalidade de jagunços e policiais até o sacrifício da vida, se não houver por trás muito desespero e sofrimento.
Resta a questão da violência e aqui também há um vínculo com a luta contra a escravidão. Para o êxito dessa luta foram igualmente importantes os moderados como Nabuco e os da ação direta como Antonio Bento, uma espécie de dialética entre ação parlamentar e de rua. Nem todos os abolicionistas foram comedidos. Luís Gama, por exemplo, ao advogar a causa de um escravo acusado de matar o amo, afirmava que agia sempre em legítima defesa todo escravo que assassinasse o senhor. Anos mais tarde, quando quatro escravos acusados do homicídio do filho de um fazendeiro foram linchados pela multidão em Itu, Gama declarou: "Eu, que invejo com profundo sentimento estes quatro apóstolos do dever, morreria de nojo se por torpeza me achasse entre essa horda inqualificável de assassinos".
Pois a verdade é que a violência, a radicalização são a consequência indesejável, mas inevitável da procrastinação, do adiamento indefinido das reformas necessárias, da opacidade do sistema político. Nada melhor, por isso, para terminar esse paralelo, do que refletir sobre as sábias palavras de Nabuco de Araújo em 1870: "Senhores, este negócio é muito grave, é a questão mais importante da sociedade brasileira, e é imprudência abandoná-la ao azar. (...) O pouco serve hoje, o muito amanhã não basta. As coisas políticas têm por principal condição a oportunidade. As reformas, por poucas que sejam, valem muito na ocasião, não satisfazem depois, ainda que sejam amplas".

Texto Anterior: Dia do fico; Regras específicas; Na feira; Condução segura; Aposta esportiva; Contra-ataque imediato; Pela carteira; Caso kafkiano; Com multa; Acima da média; Novo parceiro; Foco latino
Próximo Texto: "Buy Brazilian", o governo joga contra
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.