São Paulo, sábado, 4 de abril de 1998
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Basta de delírio

MARIO SERGIO CORTELLA

Durante os meses iniciais deste ano, participamos, perplexos, de um embate quase psiquiátrico: o esforço desmesurado da Secretaria de Estado dos Negócios da Educação de São Paulo para negar evidências.
A mídia inteira (durante semanas) mostrava reportagens (com fotos e vídeos) de pais acampados na porta de escolas, à procura de um lugar constitucionalmente garantido para seus filhos e filhas no ensino fundamental, e a secretaria respondia, de maneira monocórdia: "Não há falta de vagas".
Mais imagens e reportagens, mostrando a realidade, e a secretaria afirmava: "Não há falta de vagas; o problema é que os pais querem os filhos nas melhores escolas" (estranho desejo esse, não?).
Mais, mais e mais notícias sobre crianças com impossibilidade de estudar; parlamentares avocando os responsáveis para esclarecimentos na Assembléia Legislativa; sindicatos da área educacional reafirmando que a realidade não coincidia com a posição oficial; organizações da sociedade civil e das igrejas exigindo o atendimento escolar; promotorias da infância e da adolescência colocando em ação instrumentos legais de proteção aos menores.
Por fim, especialistas relembrando que haviam alertado para esse risco quando do fechamento de escolas na reorganização da rede estadual (em 1996), dos processos de municipalização precoce e compulsória (no ano passado) e da redução da grade horária com dispensa de docentes (neste ano).
Resposta da secretaria estadual: "Não há falta de vagas no ensino fundamental paulista" (tanto que aceitou, de forma conivente e omissa, que a Secretaria da Educação da capital, com mais de 10 milhões de habitantes, abrisse irresponsavelmente um único posto de inscrição na campanha "Toda Criança na Escola", feita precariamente pelo Ministério da Educação em fevereiro deste ano; nem se deu ao trabalho de, mesmo respeitando a independência entre governos, oferecer alternativas aos que, desde 1993, são reféns da incompetência administrativa municipal).
Pois bem, ofereçamos à secretaria estadual o benefício da dúvida (pode ser que a teimosa realidade não estivesse de acordo com a posição do governo).
Suponhamos que, de fato, o argumento sobre a suficiência de vagas para crianças de 7 a 14 anos fosse correto. Por que, então, a secretaria recusou-se (até na Justiça) a cumprir o estabelecido no art. 249, parágrafo 5º, da Constituição paulista? Ele diz: "É permitida a matrícula no ensino fundamental a partir dos seis anos de idade, desde que plenamente atendida a demanda de crianças de sete anos de idade".
Ora, se é permitida a matrícula com seis anos e se a demanda (tal como afirma sempre a secretaria) estava atendida, por que a negativa em fazê-lo?
É uma posição de vontade política? É uma concepção pedagógica (incompreensível nestes tempos, quando até o MEC tem projeto para que o ingresso no ensino fundamental se faça a partir dos seis anos de idade)? É uma forma de constranger os municípios a assumir uma tarefa que deveria ser partilhada e, assim, economizar recursos?
Não há uma justificativa aceitável para negar esse direito. Se estivermos certos os que defendem a matrícula das crianças no próprio ano em que completam a idade adequada, a Justiça dará sustentação a isso; se, por outro lado, a secretaria confirmar a suficiência de vagas, cumpra-se, sem titubeio, a Constituição estadual.
Afinal de contas, a questão é muito séria. Não dá para achar que a realidade é fruto de um delírio coletivo e que só os governantes possuem razão.

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