São Paulo, sábado, 4 de abril de 1998
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A cilada da causa nobre

GUIOMAR NAMO DE MELLO

Conheço alguém que vive alertando para o perigo da causa nobre: no calor da unanimidade, todos se esquecem das condições para que sua nobreza se efetive. O clamor para matricular na primeira série do ensino fundamental as crianças com menos de sete anos é uma cilada desse tipo: todos são a favor, mas poucos se lembram de que a matrícula, em si mesma, não garante ensino de boa qualidade.
A lei permite absorver crianças mais novas na primeira série, desde que as de sete anos estejam atendidas plenamente. O advérbio, no caso, não é figura de retórica. Significa qualidade, traduzida em melhores salários, mais capacitação para os professores, materiais didáticos estimulantes, tempo e espaço adequados para ensinar e aprender. Isso custa dinheiro, leva tempo e requer dedicação profissional.
Em São Paulo, 90% das matrículas de ensino fundamental estão na rede pública estadual. São 4 milhões de alunos, mais de 5.000 escolas. No entanto, apenas 121 dos 625 municípios paulistas, os mais ricos do país, oferecem ensino fundamental: 726 mil vagas no total, das quais 70% concentradas na prefeitura da capital.
Dividindo o total de recursos municipais que, por lei, devem ser investidos na escola obrigatória pelo inexpressivo número de alunos municipais, chega-se a um total "per capita" anual de R$ 2.645.
Já os recursos que o Estado deve destinar ao ensino fundamental, divididos pelos 4 milhões de alunos, resultam num "per capita" de apenas R$ 590.
Educação de qualidade custa caro. Os pais que pagam escola particular para seus filhos sabem disso. São Paulo não pode contar apenas com o dinheiro público estadual para financiar o ensino fundamental. Isso não dá R$ 600 por ano -é pouco mais do que o custo de uma boa escola particular por mês.
A maioria dos Estados norte-americanos investe mais de US$ 5.000 por aluno/ano; a União Européia está insatisfeita com a média regional de US$ 3.500; e nossos parceiros do Mercosul, exceto a Bolívia, gastam mais do que US$ 600 anuais com seus alunos.
Nessas condições, defender a matrícula de crianças menores de sete anos apenas com argumentos emotivos, sem discutir a forma de colaboração entre Estado e municípios, pode parecer "politicamente correto" nos veículos de comunicação. Mas, do ponto de vista educacional, é demagógico.
Em lugar de respeitar a criança pequena, os defensores da medida desconhecem sua necessidade de acolhimento, de tratamento personalizado, em classes menos numerosas, com a atenção que o início da escolaridade requer.
A escola pública paulista começa a dar os primeiros passos para chegar a esse modelo, programado para se iniciar aos sete anos e abrigar, durante oito anos letivos, oito cortes escolares com um mínimo de repetências.
Se as escolas estaduais tivessem de absorver agora as 300 mil crianças de seis anos existentes no Estado, isso significaria, durante no mínimo oito anos, distribuir pelo menos 1 milhão de livros didáticos adicionais por ano e 300 mil merendas a mais por dia, empregar mais 10 mil professores, ocupar mais 10 mil salas de aula.
Ou, então, fazer como no passado: inchar as turmas, criar um terceiro turno diurno diminuindo o tempo de aprendizagem, congelar os recursos de manutenção, arrochar os salários docentes. E continuar inchando, encurtando, desqualificando a escola obrigatória, para seguir produzindo o fracasso e o desalento de seus alunos e professores.
Por covardia ou demagogia, ninguém tem coragem de dizer que está absolutamente correto restringir a matrícula de 98 às crianças nascidas até meados de 91, a fim de lhes assegurar uma escola estadual menor e mais ordenada.
Assim, a geração de 92, hoje com seis anos, poderá ser recebida no ano que vem numa escola melhor e mais acolhedora, porque um ano mais próxima do sucesso com qualidade -esse, sim, uma causa nobre sem ciladas.

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