São Paulo, quinta-feira, 11 de junho de 1998
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A pátria de chuteiras de cada torcedor

JOSÉ GERALDO COUTO

Jogo de estréia do Brasil numa Copa -principalmente para quem vê isso "in loco" pela primeira vez, como eu- traz à mente aquela velha história da "pátria de chuteiras".
Charles Baudelaire escreveu que "a verdadeira pátria é a infância".
Referia-se, claro, àquele acervo de lembranças e emoções que constituem nosso patrimônio mais íntimo.
Pouco antes da partida de ontem, quando os telões e monitores de vídeo do Stade de France exibiam lances marcantes de Copas anteriores, me dei conta de que na minha pátria pessoal ocupam um lugar de honra os lances mágicos de Pelé, Tostão, Rivellino -mas também de Maradona, Cruyff, Platini...
Logo depois, os times entraram em campo, tocaram-se os hinos, aquela coisa toda.
Bandeiras verde-amarelas por todo lado.
A pátria, entretanto, ainda não estava ali.
Enquanto observava, apreensivo, o deus-nos-acuda em que se transformava a defesa brasileira cada vez que os escoceses conseguiam passar da intermediária, eu tentava entender o que é que leva determinado fato, personagem ou momento a se incorporar para sempre (ou pelo menos até que venha a esclerose) ao nosso arquivo sentimental.
Jogo vai, jogo vem, pênalti, segundo tempo, e de repente, de tanto deus-nos-acuda, finalmente Deus nos acudiu.
A entrada de Denílson no lugar de Bebeto foi um desses instantes fulminantes que quem viveu não esquece.
Um arrepio parece ter percorrido toda a platéia que lotava o Stade de France quando o moleque ex-tricolor partiu pela esquerda, semeando o pânico na defesa escocesa.
A meu lado na tribuna de imprensa, Alberto Helena Jr., até então afundado num silêncio tenso, jogou os braços para cima e exclamou: "Esse é o futebol brasileiro!"
Carlos Heitor Cony emendou: "Por que esse menino não entrou desde o começo?" (boa pergunta, por sinal).
Ninguém tinha ido ali para, "galvãobuenamente", torcer pelo Brasil.
Mas a arrancada de Denílson foi capaz de empolgar o mais frio dos observadores.
Estava ali, talvez, naquela sequência de dribles e toques -naquela exibição de ousadia e talento, em suma-, a resposta à questão que me inquietava durante o jogo.
Quando um marmanjo barbado e vivido se emociona ainda com alguma coisa, é porque essa coisa teve a faculdade de reconectá-lo com a infância, essa pátria que a gente traz dentro, mesmo que não queira.
Às vezes me pergunto se nós, que amamos o futebol, não estamos sempre em busca de recuperar uma emoção perdida no passado, como quem tenta reconstituir o que sentiu na primeira vez que fez amor, ou na primeira vez que viu o mar.
Cada vez que um jogador brasileiro está com a bola, temos instintivamente a esperança de que de seus pés saia uma jogada que nos traga de volta "aquela", de Pelé, Garrincha ou Zico, que trazemos na memória.
A vitória de ontem sobre a Escócia foi magra.
Mas alguns momentos luminosos de Denílson, Rivaldo, Ronaldinho e Leonardo bastaram para mostrar que, apesar de sua precária preparação, os jogadores brasileiros têm futebol para ganhar de qualquer time -e conquistar um lugar na pátria de cada torcedor.

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