São Paulo, domingo, 14 de junho de 1998
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A torre e o tempo

AUGUSTO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando o jovem Ezra Pound chegou a Londres, em 1908, aos 23 anos, com apenas 3 libras no bolso e algumas cópias de seu primeiro livro, "A Lume Spento", publicado em Veneza numa tiragem de apenas cem exemplares, tinha o propósito determinado de "encontrar-se com Bill Yeats".
Vinte anos mais velho do que ele, o poeta irlandês William Butler Yeats (1865-1939) já era então figura de proa das letras de língua inglesa. Em breve Pound o conheceria pessoalmente e seria reconhecido pelo seu confrade como "um vulcão solitário". Pound, por sua vez, manteria inalterada a sua admiração por Yeats. "É o único homem novo cuja obra tem mais do que interesse temporário -possíveis exceções no Continente", escrevia em 1910 à sua mãe. Um pouco adiante, num depoimento à revista "Poetry" sobre "o estado das coisas em Londres", datado de 10 de dezembro de 1912: "Acho que o sr. Yeats é o único poeta digno de estudo sério". E em "A Few Dont's" (Alguns Nãos), 1913: "O sr. Yeats despiu a poesia inglesa, de uma vez por todas, de sua maldita retórica. Eliminou tudo o que é não poético -e muito do que é. Tornou-se um clássico em vida e 'nel mezzo del cammin'. Ele fez do nosso idioma uma coisa maleável, uma fala sem inversões".
A amizade entre os dois grandes poetas se estreitaria por aquela época, perdurando por quase 30 anos. Entre 1913 e 1916 Pound chegou a ser uma espécie de secretário particular do "tio William". Mas fez muito mais do que isso. Atuou criticamente, discutindo a linguagem poética do seu mestre e influindo de forma decisiva na sua evolução, como o faria também, depois, com um quase-discípulo, Thomas Stearns Eliot, revisando, cortando e melhorando o grande poema "The Waste Land". Paradoxo dos paradoxos, Pound corrigiria a obra de dois Prêmios Nobel, sem ganhar nenhum ele próprio. Não à toa João Cabral o lembra no poema-dedicatória do livro "Agrestes", quando menciona "o leitor contra", "o leitor maugrado/ e intolerante, o que Pound/ diz de todos o mais grato". Pois foi esse jovem "leitor contra" que induziu Yeats a fugir das vaguidades e dos sestros simbolistas e rumar para uma linguagem mais objetiva e direta, segundo os preceitos que seriam a base do Imagismo poundiano: tratamento direto da "coisa", quer subjetivo ou objetivo, não usar palavras supérfluas, fugir das abstrações. "Não poetizar seu poema", diria também João Cabral. Pois Yeats afirmou certa vez a Herbert Read: "Todas as revisões que eu fiz foram no sentido de tornar meus poemas menos poéticos".
Yeats teve a inteligência e a grandeza de reconhecer, desde logo, o benefício da crítica de Pound: "Ele me ajuda a retornar ao definido e ao concreto, para longe das abstrações modernas" -escreveria em carta à amiga e protetora, lady Gregory, em janeiro de 1913. "Nós nos rebelamos contra a retórica, e agora há um grupo de poetas mais jovens que ousa chamar-nos de retóricos. Ao regressar a Londres, vindo da Irlanda, fiz um jovem poeta repassar toda a minha obra comigo para eliminar o abstrato. Este era um poeta americano, Ezra Pound" -proclamaria, publicamente, numa conferência de 1914.
Quando, dois anos antes, o impetuoso antileitor atreveu-se a suprimir algumas palavras dos textos que Yeats enviara, por seu intermédio, à revista "Poetry", o "tio William" aborreceu-se, mas não rompeu com ele. Discordou, concordou, e acabou até reformulando inteiramente um dos poemas. Sabia do seu próprio valor e, na verdade, nem tinha ainda escrito as suas melhores obras, os poemas do "último Yeats", com os quais reciclaria toda a sua obra -o Yeats pós-Pound. A primeira poesia de Yeats se apresenta recarregada de elementos decorativos e de alusões à mitologia céltica, expressando-se em termos cultos, no jargão sublimado ou "sermo nobilis" dos poetas de linha esteticista do fim do século 19. O salto para o século 20 (análogo ao do "último Blok", o Aleksandr Blok de "Os Doze", influenciado pelos cubo-futuristas russos), Yeats o daria pelas mãos de Pound. Começaria a se evidenciar na linguagem mais coloquial, concisa e precisa, dos poemas que publicou a partir do seu quinto livro. "The Green Helmet and Other Poems" (1910), onde, segundo Pound, sua obra se torna mais enxuta, buscando maior firmeza de contornos, e onde já encontramos textos de ruptura, ao mesmo tempo tersos e soltos, como "The Fascination of What's Difficult" e "No Second Troy" (que Pound distingue especialmente). Tomaria impulso no volume seguinte, "Responsibilities" (1914), e atingiria o seu ápice em "The Tower" (1928), que se abre com o admirável "Sailing to Byzantium" e inclui textos notáveis como "Nineteen Hundred and Nineteen", "Meditations in Time of Civil War", "Leda and the Swan", "Among School Children", "All Soul's Night" e o próprio poema "The Tower". Uma nova coletânea, "The Winding Stair and Other Poems" (1933), acrescentaria a tais peças algumas preciosidades como "Byzantium", a mais famosa delas, na segunda visita de Yeats ao tema, "Her Dream", uma jóia precisa como um texto de Emily Dickinson, "A Dialogue of Self and Soul", "Blood and the Moon", "Oil and Blood". Textos como "The Gyres" e "Lapis Lazuli" sustentariam essa alta voltagem poética na última coletânea de sua lírica, enfeixada na edição póstuma dos "Last Poems" (1936-39). Mais próximo de Yeats do que o próprio Pound, por compartilhar com o poeta irlandês as influências simbolistas, Wallace Stevens palmilharia caminho inverso, do concreto ao abstrato. Yeats, no entanto, parece ter combinado com maior equilíbrio as duas vertentes, atingindo, em seus últimos poemas, um nível de excelência raramente alcançado pelos poetas de sua geração e posicionando-se, ao lado de Rilke, Blok e Valéry, como um grande clássico moderno, a preceder a geração exploratória e rebelde dos propriamente modernistas, Schwitters, Khliébnikov, Maiakóvski, Pound, Eliot (o de "Waste Land"), Apollinaire.
O poema "A Torre" identifica exatamente essa fusão de concreto e abstrato, já no plano da imagem-tema, pois a torre do poema é tanto alegórica quanto real, de fato o próprio local em que ele redigiu o seu texto. Em 1917, pouco antes de casar-se, Yeats adquiriu a velha torre normanda (Thor Ballylee) da aldeia de Ballylee, próxima da cidade de Gort e de Park Coole, a mansão de Lady Gregory, no condado de Galway. Reformou-a e passou a usá-la como residência de verão, de 1919 a 1929. Muitos dos seus poemas da última fase foram ali criados. "Agrada-me pensar neste edifício como no símbolo permanente da minha obra, facilmente visível por quem quer que passe a alguma distância", escrevia Yeats a Thomas Sturge Moore. As alusões do poema estão todas referenciadas ao local. Conforme as notas do próprio Yeats, "as pessoas mencionadas se associam pela lenda, história e tradição à região de Thoor Ballylee ou do Castelo de Ballylee, onde o poema foi escrito. Mrs. French viveu em Peterswell no século 19 e era aparentada a Sir Jonah Barrington, que descreveu o episódio das orelhas e o problema que dele decorreu. A beldade do campo e o poeta cego são Mary Hines e Raftery, e o episódio do homem afogado no pântano de Cloone é narrado no meu livro 'Celtic Twilight' (Crepúsculo Céltico). A perseguição de Hanrahan à lebre e aos sabujos fantasmas foi tirada das minhas 'Stories of Red Hanrahaan'. Os espectros foram vistos jogando os dados naquele que é agora o meu quarto de dormir e o velho falido viveu há cerca de cem anos. Segundo uma lenda, ele só podia deixar o Castelo aos domingos, por causa dos credores, e, segundo outra, se escondia na passagem secreta". Ben Bulben é uma montanha, ao norte da cidade de Sligo, onde Yeats passava temporadas na infância. Burke e Grattan são personagens reais, que aqui comparecem como "doadores", exemplares protagonistas da história irlandesa: Edmund Burke (1729-1797), autor de ensaios políticos e filosóficos; Henry Gratan (1746-1820), figura de relevo na luta pela emancipação de seu país. Mesmo as referências aos fatos históricos ou lendários resultam em imagens diretas e grotescas, como a do afogado por engano na lama, ou a das orelhas em bandeja, que relembra inelutavelmente a passagem do Canto 4 de Pound, em que o coração do trovador Cabestan é dado a comer à sua amante pelo marido: "O coração de Cabestan no prato?/ nada mudará este gosto".
Em "A Torre" Yeats aborda um tema que se tornou muito caro a ele nos últimos tempos (focaliza-o, também, em diversa pauta, nos poemas de Bizâncio e em "Among School Children", entre outros textos): o da velhice e o da decadência, na morosa expectativa da morte. O tema é tratado aqui de maneira ainda mais explícita e realista, e trazido das paragens da alusão e da metáfora para o duro chão da vida, constituindo uma espécie de testamento do poeta. Dividido em três partes, o poema tem uma introdução, em que Yeats expõe o seu inconformismo com a degenerescência da idade; a seguir, numa série de estrofes de oito linhas, evoca os fantasmas da Torre para inquiri-los sobre as perplexidades que o atormentam; no terceiro segmento, feito de ritmos breves e sincopados, rememora o vigor da juventude, alegorizado pela evocação da pesca aventurosa nas escarpas de Ben Bulben, e, por fim, expõe o seu credo e transmite o seu legado aos moços, enquanto alguns derradeiros indícios de vida -nuvens, um canto de ave- se perdem nas sombras do ocaso.
No livro "Linguaviagem" (Companhia das Letras, 1987) inseri as traduções que fiz dos poemas "The Fascination of What's Difficult", "Her Dream", "Bizantium" e "Sailing to Bizantium", e em "Rilke: Poesia-Coisa" (Imago, 1994), em apêndice, a versão de "Leda and the Swan", buscando propiciar um cotejo com o poema "Leda", de Rilke. A tradução de "No Second Troy", ora apresentada, é inédita. O poema funde a evocação de Maud Gonne, a revolucionária irlandesa que foi a grande paixão não correspondida de Yeats, com a de Helena de Tróia, numa síntese perfeita, de contida mas intensa emocionalidade. A ela também parece aludir a estrofe final da segunda seção de "A Torre", que começa: "Acaso a fantasia é compelida/ À mulher ganha ou à mulher perdida?".
Estas novas versões constituem, como as outras, uma tentativa de recriação, tendo por meta fazer do texto-origem um poema palatável em português. Não se trata, pois, de tradução literal. Basta comparar os últimos versos da primeira estrofe com a versão de Péricles Eugênio da Silva Ramos (um conhecedor e um estudioso competente, porém mais apegado à literalidade do que à beleza das soluções) para verificar o quanto nos distanciamos na prática tradutória. Péricles: "Devo pedir à Musa que se vá, eu penso,/ E por amigos ter Platão e ter Plotino, apenas,/ Até a imaginação, olhar e ouvido/ Poderem contentar-se só com o raciocínio e se ocupar/ De abstrações; ou ser cada um escarnecido/ Por uma espécie de chaleira, já ruim, no calcanhar". A tradução completa de Péricles está no volume "Poemas de W.B.Yeats" (Art Editora, 1987). Infelizmente, as estrofes do poema se apresentam ali mal divididas; a partir da sexta estrofe a última linha passa a constituir a primeira da estrofe seguinte. Um equívoco de que o tradutor parece não se ter dado conta, pois procura tecer algumas rimas em função das linhas acrescidas por engano.
Escrevendo à sua amiga Olivia Shakespear em 1928, após a publicação de "A Torre", dizia Yeats, já senador e Prêmio Nobel, que a coletânea era de longe o seu maior sucesso literário, com 2.000 cópias vendidas no primeiro mês. Mas afirmava também que, ao reler os seus versos, espantara-se com a sua amargura. "No entanto -concluía- foi essa amargura que deu ao livro a sua força e ele é a melhor coisa que jamais escrevi. Talvez, se eu me sentisse melhor, ficaria contente de ser um homem 'amargo'."
Só a poesia seria capaz de tratar ao mesmo tempo com tanta incomplacência, ironia e crueza, com tanta essencialidade, o tema do envelhecimento, associado à morte e à preparação para a morte, até porque o esmiuçamento das angústias, memórias e premonições que o cercam não diverte ninguém, antes incita à reflexão e à autoconsciência. A maioria das pessoas ("mostpeople", diria Cummings) quer o consolo do entretenimento, arte fácil e descartável para descansar a cabeça, "esquecer da vida", e não para problematizar-se. Mas já que a poesia insiste em não preencher esses requisitos e, portanto, não tem público e não tem valor de mercado, pode, ao menos, correr o risco de parecer desagradável, produzindo o belo através do difícil e do inominável. Aí reside a sua força. Mais do que o Torre de Ballylee, "A Torre" de Yeats projeta-se no Tempo e resiste a ele, expondo a sua e a nossa ruína.

Texto Anterior: Cineasta é tema de filmes
Próximo Texto: The Tower
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.