São Paulo, domingo, 14 de junho de 1998
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O anotador de Alice

JESUS DE PAULA ASSIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Aos 84 anos, Martin Gardner permanece muito ativo. Colunista de matemática por 25 anos consecutivos na prestigiosa revista norte-americana "Scientific American", autor de dezenas de livros que vão de história e filosofia da ciência a jogos lógicos ao estilo de Lewis Carroll, Gardner passa seus dias em Hendersonville, uma cidade da Carolina do Norte (EUA), preparando, entre outras coisas, uma versão anotada do clássico "O Homem que Foi Quinta-Feira", de G. K. Chesterton.
Quase 40 anos atrás, ele havia publicado o hoje clássico "Alice Anotada", em que explora cada parágrafo dos dois livros sobre Alice, de Lewis Carroll.
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Folha - Como definir sua linha de trabalho?
Gardner - Sou estritamente um jornalista. Tenho grau de bacharel em artes pela Universidade de Chicago. Minha especialização foi em filosofia. Fiz um ano de pós-graduação, mas não segui até obter o título. Meu primeiro emprego foi como repórter em um jornal de Oklahoma. Depois, trabalhei como relações públicas na Universidade de Chicago e, desde a Segunda Guerra Mundial, venho trabalhando como redator free-lancer.
Folha - No que está empenhado atualmente?
Gardner - Meu projeto atual é "O Homem que Foi Quinta-Feira Anotado". Estou preparando cerca de cem notas de rodapé para uma nova edição dessa obra-prima de G. K. Chesterton ("O Homem que Foi Quinta-Feira"). Na segunda metade deste ano, a Saint Martin's Press deverá publicar meu "Visitors From Oz" (Visitantes de Oz), uma nova novela sobre Dorothy, o Espantalho e o Homem de Lata e sua visita aos EUA.
Folha - O sr. mantém alguma coluna regular, como era "Mathematical Themes", publicada por muitos anos na "Scientific American"?
Gardner - Escrevi no "Scientific American" por 25 anos. Atualmente, escrevo uma coluna intitulada "Notes of a Fringe Watcher" (Notas de um Observador Menor) para o "Skeptical Inquirer", uma revista bimensal.
Folha - O sr. escreveu algo sobre filosofia da ciência?
Gardner - Muitas de minhas colunas na "Scientific American" tratavam de filosofia da ciência. Escrevi também um livro intitulado "Máquinas e Diagramas Lógicos" e muitos ensaios sobre a filosofia da ciência, que aparecem em várias de minhas antologias.
Folha - O que primeiro o atraiu para Carroll?
Gardner - Não gostei dos dois volumes de "Alice" quando era criança. Mas, mais tarde, comecei a apreciar seu humor sutil e seus paradoxos lógicos. Quando percebi que existia muito neles que não poderia ser completamente apreciado sem o auxílio de notas explicativas, tentei primeiro persuadir editores a convidarem Bertrand Russell para anotá-los! Acho que ninguém achou que valesse a pena. Muitos acharam que a idéia de anotar o livro era absurda. Então, decidi eu mesmo fazer o trabalho.
Folha - Quem deve ler Carroll, e quando?
Gardner - Não acho que se deva lê-lo antes da adolescência. Mas é claro que todos os adultos devem conhecer ambos os livros de Alice.
Folha - O sr. acha que um suposto anticientificismo é uma força real contra a ciência (como o pensam Holton Gould e outros)? Esse movimento poderia ser barrado?
Gardner - Sim, acredito que o anticientificismo é uma força violenta e deplorável que age na sociedade, especialmente nas áreas médicas, onde ele pode causar grandes males e mesmo mortes. Muitas pessoas morrem todos os anos devido a moléstias evitáveis, devido à Ciência Cristã, por exemplo, ou por confiarem em duvidosas medicinas alternativas. Essas tendências só podem ser detidas por uma educação científica mais eficiente em nossas escolas, e por revistas como o "Skeptical Inquirer", que têm alguma influência na mídia.
Folha - Qual a extensão de um pensamento anticientífico hoje?
Gardner - Acho que a anticiência tem tido impacto negativo sobre a ciência norte-americana. Fundamentalistas protestantes têm sido bem-sucedidos em obrigar aulas antievolucionistas em escolas públicas. Não estou certo de como reverter essa "idiotização" dos EUA, a não ser pelo aumento do salário dos professores e pela introdução de uma melhor educação em matemática e ciência nas escolas públicas. A televisão poderia fazer muito para reverter essa tendência mas, no momento, a mídia está mais interessada em popularizar pseudociência, e nisso reflete o interesse do público no oculto e no paranormal.
Folha - O sr. diz que a anticiência é uma força real e nefasta na sociedade e que é preciso combatê-la. E quanto a uma confiança cega no método científico e na capacidade que a ciência teria para resolver todos os problemas humanos? Isso não é também negativo?
Gardner - Concordo que uma fé cega na ciência é também uma força negativa. Concordo também com Kant, que afirmou que a ciência pode nos dizer o que é, mas nunca o que deve ser. Em meu livro confessional, "The Whys of a Philosophical Scrivener" (Os Porquês de um Escriba Filosófico), digo que acredito em um deus pessoal e na esperança de algo após a vida. Meu último livro, "The Night Is Large" (Grande É a Noite) toma seu título de uma observação de Lord Dunsany: "O homem é pequeno e a noite é grande e cheia de maravilhas". Meu teísmo filosófico encontra-se também defendido em minha novela religiosa "The Flight of Peter Fromm" (O Vôo de Peter Fromm).
Folha - Em sua opinião, o que se deve fazer para promover o conhecimento científico na sociedade? A ficção, e o sr. é autor de ficção, pode ter algum papel nisso?
Gardner - Quanto à ficção científica, li a maior parte em minha juventude e meu autor favorito permanece sendo H. G. Wells. Acho que ela tem feito de fato muito pouco no sentido de combater a pseudociência. De fato, muito da moderna ficção científica a tem promovido. Tenho em mente as numerosíssimas novelas sobre discos voadores, por exemplo, ou aquelas que tomam a sério as maravilhas da parapsicologia. John Campbell, o famoso editor de "Astounding Science Fiction", divulgou para o mundo a cientologia de Hubbard e também promoveu todo tipo de picaretagem científica, como o Dean Drive (um motor inercial), uma máquina de ler a mente etc. Ele teve, na minha opinião, uma influência nefasta sobre a ficção científica.
Folha - Todos os esforços para promover o conhecimento científico na sociedade tomam como ponto de partida um conjunto de conhecimentos (teorias, eventos) que os cientistas afirmam que as pessoas devem conhecer para que possam ser consideradas cientificamente alfabetizadas. O que o sr. poria nesse conjunto?
Gardner - Acho que todo mundo deve ter um conhecimento das bases da ciência, especialmente o bastante para saber que a evolução é um fato e não mais uma teoria, e para ter a capacidade de distinguir entre boa e má ciência, especialmente no campo médico. Basta apenas um pouco de conhecimento sobre o método científico para ver que a homeopatia é uma farsa como ciência médica, embora tenha muitos adeptos nos Estados Unidos, e, em especial, nos campi universitários! Pesquisas de opinião recentes têm mostrado que uma grande proporção de alunos que ingressam nas universidades não sabem que a Lua se levanta e se põe. Mais ou menos a metade deles acreditam em astrologia e em que extraterrestres estão sempre visitando a Terra. Poucos anos atrás, um astrônomo me disse que estava surpreso pelo aumento do número de estudantes inscritos em seu curso de astronomia, até que descobriu que eles se inscreviam porque esperavam aprender ali algo sobre astrologia! Todo estudante universitário, em minha opinião, deveria ser obrigado a seguir cursos introdutórios em ciências físicas e biológicas. Da maneira como as coisas estão, um estudante pode chegar a se graduar sem ter praticamente nenhum conhecimento sobre o que é ciência e como ela opera. Como Carl Sagan gostava de dizer, existem nos Estados Unidos muito mais astrólogos que astrônomos. E, recentemente, tivemos um presidente, Ronald Reagan, que acreditava piamente, ele e sua esposa, em astrologia!

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