São Paulo, quarta-feira, 17 de junho de 1998
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Devagar com o andor

LUÍS NASSIF

A imagem de indecisão do presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, leva alguns setores supostamente racionais a defender o oposto, o bonapartismo, uma espécie de Collor sem mácula, que num golpe de espada cortasse o nó górdio que amarra as reformas.
Indague-se de Collor quais os dois erros dos quais mais se arrepende -além de PC Farias. O primeiro, dirá ele, é não ter enviado ao Congresso, no primeiro dia de governo, o conjunto de reformas fundamentais -entre as quais a reforma da Previdência e a tributária (releve-se esse argumento. No início de 1990, não havia sequer um projeto claro de reforma tributária para ser apresentado ao Congresso).
O segundo erro, diz ele, "foi imaginar que a menor distância entre dois pontos fosse uma reta". Ou seja, que seria capaz de governar e aprovar as mudanças sem negociar politicamente com o Congresso, apenas utilizando a "comunicação direta com as massas".
Ouça-se novamente Collor. "Dediquei 90% do meu tempo a ser executivo, e apenas 10% a ser político" , continua ele. "Se fosse hoje, dedicaria no mínimo 50% à política e, em alguns momentos, até 90%."
Desafio político
A composição de maiorias em torno de um projeto de país é o desafio político mais expressivo de um presidente e é indelegável. A diferença entre países que ficam décadas marcando passo e outros que encontram o rumo está, em muito, relacionada à capacidade de governantes de compor maiorias em torno de programas de governo.
De repente a tradição autoritária brasileira acaba perpassando todo o espectro político, de pensadores ditos liberais a ideólogos das esquerdas.
O liberal quer um dom Sebastião, que, numa penada, implemente o seu projeto de reforma da Previdência. Mas seria o mesmo projeto dos funcionários públicos, que seria igual ao dos empresários gaúchos, que seria igual ao dos agricultores goianos?
Como pretender, então, que sua visão de mundo prevaleça, em um país continental, a não ser por meio de um trabalho paciente de tecer maiorias em torno de pontos de consenso?
FHC tem que ser severamente criticado por seu estilo pouco finalizador. E, se não aprendeu com as últimas pesquisas, nem merecerá ser reeleito.
Só que, na crítica a ele, incorre-se no erro básico de minimizar a importância da montagem de blocos de aliança em torno de um projeto de país.
Passado o período ditatorial, a falta de um projeto hegemônico barrou qualquer tentativa de superação da crise brasileira de 1979 até 1995. Ou se tinha governos com maioria e sem projeto ou com projeto e sem maioria.
Mesmo indeciso, FHC conseguiu montar uma maioria em torno de um projeto de Estado e de país que representa o pensamento de parcela majoritária do eleitorado.
Analistas esportivos
Até certo modo, não há diferença entre nós, analistas econômicos e políticos, e os comentaristas esportivos. Se algum jogador está regular em campo, logo apresentam um outro nome como a fórmula salvadora, principalmente se não estiver selecionado. "Se fulano tivesse sido convocado, a história seria outra", dizem eles. A alternativa sempre é ótima, porque pode-se comprovar na prática quem está jogando mal em campo, mas jamais se saberá ao certo como jogaria aquele que nem sequer foi selecionado.
Obviamente não se está falando do eleitor de Lula, que pretende, legitimamente, a mudança do modelo econômico de abertura e privatização.
Parece que se esquece de que -só para avaliar os últimos anos- nove em cada dez atos de bonapartismo custaram caríssimo ao país.
Foi um desses gestos "heróicos" que permitiu a uma única pessoa -o então diretor do Banco Central Gustavo Franco- atropelar a lógica do Real e valorizar a moeda em 15% em relação ao dólar.
Foi o bonapartismo da equipe econômica, acrescida do estilo alucinado de Ciro Gomes, que liquidou com o superávit comercial em poucos meses. Foi o bonapartismo que os fez escancarar as importações de automóveis, a pretexto de punir as montadoras -conferindo a elas, que também controlavam as importações, os maiores lucros da sua história.
Finalmente, foi o bonapartismo que permitiu, em abril de 1995, que o atual governo começasse a praticar as taxas de juros mais irresponsáveis da história.
Chega desse subdesenvolvimento. Há alternativas legítimas a FHC, nessas eleições. Mas tentar fantasiá-las de cavaleiros andantes que irão resolver todas as questões no primeiro mês de mandato só com a força do pensamento não faz justiça ao atual estágio de desenvolvimento cultural e político do país.

Email: lnassif@uol.com.br

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