São Paulo, sexta-feira, 26 de junho de 1998
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Coragem, generosidade e o ego do teatro

GERALD THOMAS
EM NOVA YORK

Enrolado no papel de embrulho marrom -o mais ordinário possível-, o ator David Bryne passa suas tardes vagando pelas ruas de Nova York. Grisalho, acabado, Bryne é uma "escultura morta", que perambula pela cidade em sinal de protesto. "Quero que me reciclem, que me joguem fora", ele berra para quem quer ouvir.
Mas, em geral, ninguém lhe dá ouvidos. O povo passa por ele batido. No papel que o embrulha, ele rabiscou algumas frases célebres que traduzem sua agonia. Em seu peito, se lê: "Quero virar um simples produto de consumo" (de Andy Warhol). Nas costas, com caneta grossa, está grafitada a frase que melhor traduz a impotência dos velhos guerreiros da contracultura: "Não há nada mais constrangedor do que um velho cantando rock", de Grace Slick, cantora da ex-banda radical Jefferson Airplane.
Bryne é um triste sobrevivente do teatro dos anos 60, um velho militante do teatro de Grotowski, que não encontrou mais espaço para a sua arte nesta era viciada em frivolidades, em notícias rápidas e ligeiras, e acabou virando chacota nos meios teatrais nova-iorquinos.
Na verdade, pode-se dizer que Bryne é o único culpado pelo seu tragicômico destino e que não teve jogo de cintura para acompanhar os tempos, que não teve coragem de abandonar o seu ego. Pode-se dizer que a loucura de Bryne não é oriunda da frustração em assistir a esta era de frivolização e emburrecimento de todas as artes, mas sim de seu excessivo narcisismo.
Bryne sente que foi impedido de continuar. Mas continuar o quê? Continuar um discurso que pecou por não saber se renovar?
Eu me pergunto se não é, meramente, uma questão de generosidade. Sim, a generosidade de descer do seu pedestal de certezas e enfrentar um bravo diálogo com seus contemporâneos. Bryne está assim porque não entendeu os eventos radicais que transformaram e inverteram, radicalmente, os valores sociais e culturais que regem a vida prática do teatro.
Que valores são esses? Exatamente os valores opostos àqueles que surgiram quando Bryne correu para a Polônia, atrás de seu guru. Nesses 30 anos, o teatro passou da procura brutal por uma identidade a uma insistente forma que propaga e tenta imprimir na sociedade -com enorme arrogância- a imagem imaculada de seu criador.
"Um circo! Um festival podre de exibicionistas", Bryne monologa, sem ser perguntado. Mas de quem ele está falando? Dele mesmo? Será que ele fala da "performer" Karen Finley, que agora cobre seu corpo de chocolate e sobe aos palcos? Ou será que fala da artista Orlan, cuja obra-de-arte consiste em submeter sua cara a diversas cirurgias plásticas, virando uma reprodução temporária e artificial de uma Mona Lisa ou uma Greta Garbo?
Será que Bryne reclama dos artistas que só conseguem se "transformar em arte", a ponto de se mutilarem para tanto? Será que Bryne reclama do grupo mineiro Dança Burra ou dos sobreviventes do La Fura dels Baus, que levam às últimas consequências (não sem ironia) a absoluta crítica à gestalt moderna?
Pode ser que não. Pode ser que Bryne desconheça todos eles e esteja reclamando, na verdade, daqueles artistas que viraram repetições insistentes de uma fórmula que deu certo e que foi, devidamente, absorvida pela sociedade como um produto de consumo de vanguarda. A deformação e a fragmentação existem no vernáculo do artista há muito tempo, talvez de forma mais evidente e protestante, desde que Duchamp pintou um bigode na "Mona Lisa".
Este ano de 98 está preenchido por constantes e necessários (...e exaustivos!) seminários e debates a respeito dos rumos múltiplos, desorganizados e egocêntricos do teatro dos últimos 30 anos. Descrito por vários experts como um "vício impossível de ser curado", o teatro continua a atrair multidões no mundo inteiro.
Centenas de festivais pipocam nos cinco continentes, páginas e mais páginas de jornais são devotadas a criaturas que atacam ou defendem essa arte. Mas, quando examinado microscopicamente, mesmo até por pessoas que o praticam, poucos sabem dizer por que ele chegou a esse ponto de esterilidade, previsibilidade e falta de generosidade.
Generosidade. Se virmos o teatro como uma arte cujo epicentro reside no ego daquele que o pratica, deve-se esperar dele somente que esse ego abocanhe tudo aquilo que estiver em seu caminho e que ele devolva essa matéria digerida, devidamente revestida, decorada do seu jeito, com sua assinatura codificada e pessoal, sua "fórmula" já aprovada pelas platéias internacionais. Pode ser esse o excesso de ego do qual Bryne reclama.
Mas, se virmos o teatro como uma arte em si, que cria casamentos temporários com aqueles que criam por meio dele, encontraremos poucos artistas verdadeiramente empenhados em desvendar seus códigos enigmáticos, sua dialética difícil de acompanhar. Um desses poucos é Antunes Filho, encenador-mestre e artista genial que, inquieto e enojado com a fórmula previsível da representação teatral, tem a coragem e a generosidade de abandonar qualquer trilha que o paralise e enclausure num só monólogo sua genial concepção para o teatro.
Poucos no mundo do teatro, muito poucos, mantêm sua criatividade dentro de uma perspectiva tão verdadeiramente experimental e revolucionária quanto Antunes.
Talvez por causa de uma demanda "industrial", ou uma necessidade patética de "abafar", agradar e se provar rentável, quase toda uma geração pós-68 parou no tempo -justamente essa concepção concreta de tempo, que tanto ajudou o modernismo a perseguir o novo e descartar o velho. Parada e iludida por um falso brilho de juventude que seu espelho lhe dá, grande parte da geração pós-68 faz com que qualquer obra-de-arte venha até ela, se curve ao seu uso e abuso oportunista e, travestida de truques, luzes e discursos pessoais, só consegue mesmo matar a experiência do novo, de um teatro realmente novo. Se me incluo nessa leva? É evidente que sim.
Estamos mesmo fadados a virar uma versão industrializada e despersonalizada dos nossos sonhos. Não é à toa que David Bryne escolheu o papel de embrulho mais barato que pôde encontrar. Nossa generosidade em absorver, ou mesmo em tentar entender, novas formas de expressão se transformou em pequenos e ríspidos comentários irônicos, ácidos, a respeito daqueles que habitam esse pequeno microcosmo.
Nessa época de efervescente discussão sobre a sobrevivência desse "vício", só posso me lembrar com alegria e emoção de uma frase que Julian Beck, o mago do Living Theater, me cochichava no ouvido antes de sua entrada em cena, em Frankfurt. Julian era o protagonista da minha "Trilogia Beckett", em que fazia, pela primeira vez em sua explosiva carreira teatral, o mero papel de ator.
"Eles nunca me perdoarão por isso", dizia ele sobre os ex-radicais barbados que enchiam nossa platéia. "Mas quem sabe se, no final da peça, eu não ergo o meu punho, só para lhes dar aquele gostinho que tanto esperam de mim?" Julian riu e, um segundo antes de entrar em cena, cochichou de novo: "Espero que tenham a generosidade de entender o que essa experiência significa no final da minha vida". Para nosso próprio espanto, a platéia devolveu a generosidade de Julian. E a arte de representar Beckett nunca foi a mesma. Ah, que saudade do Antunes.

E-mail: geraldthomas@uol.com.br

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