São Paulo, domingo, 28 de junho de 1998
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A força do destino

CARLOS HEITOR CONY

Não foi um dia qualquer aquele 15 de julho de 1950. Estávamos empanturrados de glórias, vínhamos de uma série de goleadas esmagadoras em cima de seleções européias.
Um cidadão que duvidasse da vitória nem seria linchado: seria internado num hospício, como louco desvairado.
Vítima e algoz ao mesmo tempo, a seleção dirigida por Flávio Costa vivia um clima de euforia farta e justificada. O técnico seria lançado candidato a deputado federal, os cartolas mais comprometidos com o triunfo iriam para o Senado, alguns jogadores seriam vereadores, todos seriam consagrados em bronze ou mármore.
Na mídia (para falar a verdade, ainda não havia mídia naquele tempo, havia era a imprensa escrita e falada) ninguém se preocupava com o adversário, era um vizinho conhecido e pouco temido, sua fase de glórias havia terminado nos anos 30, Gighia era mais desconhecido do que do outro lado da Lua.
Nunca houve uma noite como aquela, tão tranquila, tão natural, tão nossa. Pela manhã do dia 16, quando fui para o Maracanã, ainda havia cinzas queimando nas calçadas, aquele fogo emergencial para esquentar e esticar a pele dos tamborins que marcariam o contraponto de nossa alegria, o festival de nossa glória.
Nunca no mundo se reunira multidão igual. Quando Cristo morreu no alto da cruz, além de Maria e do discípulo mais amado, havia quando muito uns trinta gatos pingados em volta. Quando César foi apunhalado no Senado, eram uns 10 ou 12 os comprometidos naquele idos de março. Quando Dom Pedro 1º proclamou a nossa independência, além dos soldados que o acompanhavam, e dos mensageiros, que traziam notícias da corte, havia um carro de boi conduzido por um carreteiro abobalhado que não sabia o que estava se passando (segundo a versão de Pedro Américo).
No Maracanã foi diferente. Duzentas mil pessoas espremidas, sem almoço, esperavam soar a hora formal da vitória que já fora conquistada. No final da tarde, com aquele sol oblíquo que desenha na multidão o oval da gigantesca marquise do estádio, estávamos mergulhados no poço escuro da maior desilusão da alma nacional.
Bem, a situação de hoje, apesar dos pesares, não é tão trágica assim. Fomos vacinados à força. Enfrentamos o jogo com o Chile com algum estoicismo. Voltar para casa antes do tempo era uma alternativa -nada mais do que isso. Continuar na Copa não era mais uma obrigação, mas uma decorrência de fatores que uma ópera de Verdi chamou de "a força do destino".
Perdemos em 1950 aquela inocência, aquele assanhamento que herdamos dos índios quando viram chegar as caravelas de Cabral. Talvez tenha sido melhor assim. Dolorosamente, ficamos adultos sem querer.

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