São Paulo, domingo, 28 de junho de 1998
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Droga de amor

ADRIANA VIEIRA; GABRIELA MICHELOTTI; ANDRÉ LUIZ GHEDINE; ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA; DEBORAH GIANNINI; LAVÍNIA FÁVERO

Vício, paixão e busca por status fazem com que as mulheres se envolvam com o tráfico de drogas e aumentem o número de jovens assassinadas
22,9% das estudantes de 1º e 2º graus em dez capitais brasileiras já usaram droga, segundo o Centro Brasileiro de Informação sobre Drogas
65% das presas que estão na Casa de Detenção Feminina do Tatuapé foram condenadas por tráfico de drogas
29 kg de cocaína foram apreendidos em Itu há nove dias com uma quadrilha liderada por uma mulher, Sonia Aparecida Rossi, segundo a polícia
Por Adriana Vieira e Gabriela Michelotti
Rosana, 21, Evelyn, 17, Celia, 33, e Marcia, 22. Essas quatro jovens foram mortas a tiros em São Paulo nesta semana. Uma quinta vítima, a menina Jeovânia, de 16 anos, está internada no hospital Franco da Rocha, em coma, com poucas chances de sobreviver.
Coincidência? Tudo indica que não. O número de jovens assassinadas em São Paulo cresceu 55% em apenas quatro anos. O envolvimento de mulheres no tráfico de drogas nesse período parece também ter aumentado: na Casa de Detenção Feminina do Tatuapé, cerca de 65% das presas estão lá por terem vendido cocaína, crack ou maconha -dois anos atrás, esse número não chegava a 40%.
Pelo menos nas duas chacinas desta semana os dois fatores -violência e drogas- estão relacionados diretamente. Na matança de Francisco Morato, um município pobre a 45 km de SP, os assassinos procuravam Evelyn Aparecida Abrahão Zenan, 17, que acabou morta com um tiro na cabeça. O caso seria "queima de arquivo": Evelyn teria visto seu namorado, Marcos Antônio Andrade, o traficante Marcão, ser assassinado em fevereiro e, por isso, teria sido "eliminada".
Na "limpeza", os dois encapuzados mataram mais dez pessoas -entre elas, a garçonete Rosana Nascimento dos Santos, 21, e a diarista Célia Gonçalves, 33, mãe de duas crianças- e deixaram quatro feridos -Jeovânia Botelho Costa, 16, é a que está em pior estado.
Na chacina do Jardim Aracati (periferia sul de SP), os assassinos chegaram perguntando por uma tal de "Rose" e acabaram matando três pessoas, entre elas, a baiana Marcia dos Santos Santiago, 22, dois filhos, que, segundo uma amiga, era alcóolatra, viciada em cocaína e saía com traficantes para conseguir drogas.
Sobre Evelyn, a polícia diz que ela era viciada desde os 13 anos, mas sua mãe não acredita nisso. "Evelyn era muito fechada, não contava muito da sua vida, mas era uma menina obediente. Ela adorava sair à noite, mas não usava drogas. Sou enfermeira e sempre olhava na bolsa dela, cheirava suas roupas e nunca encontrei nada", diz Helena Abrahão Zenan, 47.
A irmão gêmea da garota, Érica, que é casada e mora em Pirituba, diz que Evelyn se envolveu com o traficante por amor e não porque precisasse de drogas. "No começo, meus pais foram contra, porque o Marcão era muito mais velho, tinha 37 anos. Meu pai chegou a proibir o namoro, mas não teve jeito. Ela era louca por ele."
Os colegas de classe de Evelyn -ela estudou até a sexta série, mas largou a escola no início do ano- também apostam na versão "amor bandido". "Ela não usava drogas. Adorava o namorado, tinha crises de ciúmes cada vez que alguma menina olhava demais para o Marcão", conta uma amiga que tem medo de se identificar.
Evelyn teria passado a andar com "más companhias" depois que conheceu o namorado. "Ela saía com a Rosana, que tinha má fama e estava envolvida com o tráfico", diz a mesma amiga.
"Eu pedia pra Evelyn não sair à noite, mas não tinha jeito. Ela ficava o dia inteiro em casa, cuidando do irmão menor e, depois de preparar o jantar, ia pra rua com a Rosana. Desde o início, eu não fui com a cara dessa menina", diz a mãe.
Poucas pessoas conheciam Rosana. Sua família é de Fortaleza, e ela morava com a tia, dona do bar Ponto de Encontro, local em que aconteceu a chacina e que tinha fama de "ponto de drogas". Uma irmã, poucos parentes e alguns curiosos foram ao enterro da garota, na quinta-feira passada, no cemitério São Benedito, em Francisco Morato. Ninguém quis falar com a imprensa.
Melanies e Amélias
Vício, paixão ou busca de status são os três principais motivos que fazem mulheres -cada vez mais jovens- engrossarem as estatísticas policiais.
No primeiro caso, enquadram-se as garotas que, dependentes de drogas, se envolvem com os seus "fornecedores" para fugir da pressão familiar ou para conseguir a droga grátis. "Muitas viram namoradas dos passadores e são emprestadas para favores sexuais a clientes e amigos", explica Sonia Maria Borges Depieri, assistente social do Denarc, órgão da polícia responsável pelo combate ao tráfico.
São as "Melanies" da vida real, aquela personagem vivida por Bridget Fonda em "Jackie Brown", que passa praticamente todo o filme de Tarantino fumando haxixe e maconha, vestindo apenas short e biquíni.
Vânia Rodrigues Sousa, 23, presa há 14 meses na Casa de Detenção Feminina do Tatuapé, estaria nesse grupo. De uma família de classe média do Jabaquara, Vânia começou na adolescência a andar com uma turma "barra pesada". "Comecei com clorofórmio, passei para maconha e cocaína", conta.
Aos 14 anos, já estava grávida de um namorado, o "Beto", viciado em drogas. Foi morar com ele, largou a escola e, para manter o vício, começou a sair com traficantes.
Quatro anos depois, cheirava dez gramas de pó por dia e transava com quem lhe desse drogas. Conheceu um traficante nigeriano, começou a buscar "mercadorias" para ele em Corumbá, na fronteira com a Bolívia, e acabou sendo presa.
Na cadeia, virou religiosa, diz ter se curado do vício e só pensa em reencontrar o filho -Felipe, hoje com 8 anos- para "recomeçar sua vida do zero".
No segundo grupo, das que se envolvem com traficantes por "amor", o que mais se ouve são explicações do tipo "achei que ele mudaria", "apesar de tudo, continuo apaixonada" e "acredito na força do amor".
A empregada doméstica Patrícia da Silva, 20, é uma típica representante desse grupo. Dez dias depois de ter dado à luz, ela soube que o marido José Carlos, 21, tinha sido condenado a três anos e 50 dias de prisão por tráfico de drogas. "Fiquei chocada, porque não esperava, achava que ele era um homem trabalhador. Ele nunca apareceu com muito dinheiro e eu nunca percebi que ele usava drogas", diz Patrícia.
Ela não sabe como a polícia chegou ao seu marido, que trabalhava como vigia noturno em um posto de gasolina e foi preso com duas pedras de crack. Apesar da decepção, Patrícia visita o marido duas vezes por mês no Carandiru e já levou a filha, Camila, 1, para ele conhecer.
"Perdoei, porque sei que ele entrou nessa por causa das companhias", diz Patrícia, que conheceu José Carlos em 1996, apaixonou-se "de cara" e engravidou três meses depois.
Atualmente, Patrícia mora com três irmãos de José Carlos, uma cunhada, duas sobrinhas e a filha em uma casa de apenas um quarto, próxima à favela do Jardim Bonfiglioli (zona oeste). Como doméstica, ganha R$ 300 e paga uma mulher para tomar conta de sua filha durante o dia.
No futuro, diz que "dará mais uma chance pro Zé Carlos". "Acho que errar é humano, mas se houver uma segunda vez eu não perdôo", promete Patricia.
Madames do pedaço
O terceiro tipo de mulher que se envolve com drogas é o menos ingênuo: são as que acabam se tornando "primeiras-damas" das favelas ou da região dominada pelo companheiro. "As protegidas dos traficantes conseguem poder, ninguém mexe com elas. Ganham presentes caros, roupas, carros. Viram as madames do pedaço", explica a líder comunitária e educadora Francisca, de uma favela em Alto de Pinheiros, que pede para não se identificar por medo de represálias.
Roberta, 27, era uma dessas. Caiu nas graças de um dos chefes do tráfico de uma favela na região da Vila Madalena (zona oeste) e viveu como "rainha" por três anos. "Ganhava presentes quase todos os dias: roupas, perfumes e até um carro", conta Roberta, pelo telefone.
Casado, Jorge tinha várias amantes, era disputado pelas mulheres, mas Roberta orgulha-se de ter ficado ao seu lado "até ele morrer", assassinado por outro traficante.
Depois da morte de Jorge, Roberta foi obrigada a fugir com toda a família para o interior. "Enquanto eu estava no baile, entraram no meu barraco e prometeram que da próxima vez iam me matar e, se eu não estivesse, matariam quem encontrassem lá", diz Roberta.
Apesar do poder e do dinheiro, ela não recomenda a vida de "mulher de bandido". "O medo que a gente passa é terrível. Eu não saía mais, qualquer barulho me assustava. Não compensa", afirma Roberta, que trabalha agora como empregada doméstica.
Culpa do sistema
Menos visadas pela polícia, as mulheres costumam ser usadas pelos traficantes para guardar as drogas. A ex-prostituta Kenia dos Santos Martins, 25, presa no dia 4 de abril, conta que "segurava a farinha" que o namorado vendia. Ela não usava a droga, mas participava dos lucros -como prostituta ganhava R$ 150 por noite; o tráfico rendia R$ 700, que eram divididos entre os dois. "Na hora que a polícia chegou, eu estava com toda a droga na bolsa. Eram 25 pedras de crack. Fui condenada, e ele, absolvido", diz Kenia.
Desde que foi presa, ela não recebeu nenhuma visita, carta ou recado do namorado e pretende nunca mais encontrá-lo.
Ser traída ou abandonada é comum. "Meu marido foi preso de manhã, me dedou, disse onde eu estava e onde guardava as drogas. Fui pega à noite", conta Cileide de Souza Chagas, 21, mãe de quatro filhos e colega de cela de Kenia na Cadeia Pública de Pinheiros.
O delegado Luis Fernando Rebello Beato, da 4a Delegacia do Denarc, diz que já notou o "aumento significativo de mulheres envolvidas com o tráfico" -só neste ano, foram presas duas chefes de quadrilha, a "Mara", a "Amália" e uma terceira, a "Sônia", conseguiu fugir da polícia há nove dias. "É um fenômeno muito recente. Acho difícil entender por que isso está acontecendo, mas imagino que a falta de perspectiva de emprego seja um fator forte", diz Beato.
Com a crueza que lhe é característica, o rapper Kleber Geraldo, 28, do grupo Racionais MCs, culpa o "sistema e a sociedade machista". "A mãe ensina, o sistema ensina, a novela ensina que a mulher tem de se encostar em quem tem dinheiro e poder. A garota é vítima do traficante, que é vítima do sistema, que não lhe deu educação", diz o músico, um dos autores de "Diário de um Detento" ("A mina era virgem/ ainda era menor/ agora faz chupeta em troca de pó/ esse papo me incomoda..").

Colaboraram: André Luiz Ghedine, Alexandra Ozorio de Almeida, Deborah Giannini e Lavínia Fávero

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