São Paulo, terça-feira, 30 de junho de 1998
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Cachorros

MARILENE FELINTO

Os cachorros são mais bem tratados na França do que muita gente. São cachorros grandes, gordos, de pêlo reluzente e bem escovado. Parecem pessoas. Têm direito de entrar em padarias, supermercados e farmácias. Andam livremente de metrô, ônibus, avião e se hospedam nos quartos de seus donos nos hotéis.
Sempre estranho esse hábito. Fui criada assim -cachorro no quintal, gente dentro de casa e ponto. Nos momentos de carência extrema, a pessoa já variando de fome, retirante do sertão cheio de gravetos, o sol tinindo, até o cachorro magro entra nas cogitações como uma possibilidade de comida. Com a cachorra Baleia, de "Vidas Secas", foi assim.
Mas os franceses (e a Europa) preferem os cachorros aos imigrantes árabes, africanos, aos ciganos do Leste Europeu que pedem esmola pelas ruas de Paris.
Em Berlim, uma mulher se escandalizou comigo num bar, quando me assustei com o cachorro dela. Um bicho grande, da altura da mesa, saiu debaixo da cadeira em que eu estava. Pulei para trás. Não tinha visto o animal, que ainda passou o rabo dentro do meu copo de cerveja.
A mulher indignou-se com meu susto. Perguntou de que país eu era. Brasil? Ah, então, compreendia, "porque lá os cachorros são tratados à míngua, sem respeito".
Estrangeira metida. Não sabia nada sobre a droga do país onde eu vivo. Não sabia nada sobre a droga da minha vida. Não sabia que os 9 milhões de cachorros franceses vivem muito melhor do que os 3 milhões de crianças que engrossam as ruas brasileiras.
Por isso os franceses se sentem tão superiores à gente do Terceiro Mundo. Não têm trombadinhas, assassinos de rua. O Terceiro Mundo todo caiu fora, aliás, foi cuspido da Copa do Mundo, com ou sem ladroagem dos árbitros.
Sobraram o Brasil e a Argentina. Esta última, como vive na ilusão de que é inglesa, acha que está mesmo no grupo dos privilegiados. O Brasil disfarça, segue embriagado do status vão de ser o melhor do mundo em futebol.
Os franceses se acham superiores. Por exemplo: um telejornal francês deu ontem os números da Aids no mundo. Exibia o mapa-múndi na tela e dizia que, dos 36 milhões de casos de Aids do planeta -dou os números aproximados, só para ilustrar, pois não anotei-, 21 milhões estão na África (o número aparecia sobre o mapa da África); 3,5 milhões, na Ásia (número sobre o mapa da Ásia) e 1,5 milhão, na América Latina (número sobre o mapa da América do Sul).
Mas, ao tratar da América do Norte e da Europa, o telejornal dizia apenas que, nesses dois continentes, o número "decrescera", sem especificar os milhões. Pelo contrário, apresentava, sobre os mapas de cada um, um número negativo, correspondente ao decréscimo: -36% para a Europa e -30% para a América do Norte.
Discriminação é isso. Cachorrada. Tratamento canalha. Deu vontade de sair correndo daqui. Mas para ir para onde?

E-mail: mfelinto@uol.com.br

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