São Paulo, terça-feira, 30 de junho de 1998
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Já esqueceram a seca?

VICENTE PAULO DA SILVA

Com perplexidade, vemos a seca do Nordeste pouco a pouco desaparecer do noticiário.
Enquanto isso, o povo nordestino pena, sofrendo, principalmente, com o descaso e a omissão governamentais.
A região do semi-árido nordestino compreende uma área de cerca de 666 mil km2, com aproximadamente 16 milhões de habitantes. Essa população representa 42,17% da população do Nordeste (e não pode ser vista como inserida em uma paisagem lunar, como disse o presidente). São homens, mulheres e crianças. São seres humanos.
No Nordeste, a seca é previsível. Neste século, já ocorreram 19 secas graves. Também há secas em regiões semi-áridas de outros países. Entretanto, nesses lugares, como no deserto da Califórnia e em Israel, já foram construídas alternativas. A situação climática permanece, mas esses povos não passam fome e nem sofrem consequências danosas.
No Nordeste brasileiro, o problema também é climático. Mas a solução tem que ser política. Precisamos quebrar as velhas amarras coronelistas que controlam a água e o poder político-econômico. Temos que lutar pela democratização, pelo direito à vida para todos.
Neste ano, a estiagem já atingiu mais de 1.200 municípios e quase 10 milhões de pessoas. De acordo com as previsões do Instituto Nacional de Meteorologia, os problemas na região se acentuarão ainda mais no segundo semestre de 98.
Em um recente seminário promovido pela CUT em Petrolina, Pernambuco, constatamos que existe solução para esse drama social, desde que haja maior empenho por parte do governo federal e da sociedade.
Apresentamos, como resultado do seminário, soluções concretas e efetivas, imediatas e a longo prazo.
Entendemos que "nenhum brasileiro poderá morrer de fome pela seca ou pelo desemprego".
Propomos, emergencialmente, a criação de um mutirão de arrecadação e distribuição de alimentos a todas as famílias atingidas pela seca; a utilização imediata dos estoques reguladores do governo para esse fim; a criação de armazéns no sertão que possam vender produtos mais baratos para regularizar preços em épocas de seca; a criação de um grupo de trabalho do INSS para agilizar a concessão de aposentadorias e benefícios-assistência aos trabalhadores rurais das áreas atingidas pela seca, pois constatamos que muitos trabalhadores, mesmo com o direito à aposentadoria, ainda não têm esse benefício.
Propomos o estabelecimento de uma política de saúde voltada para o combate à desnutrição e doenças endêmicas na região; a instituição imediata de um Programa de Renda Mínima baseado nos fundamentos segundo os quais toda pessoa tem direito a participar da riqueza de sua nação; o fortalecimento de uma política de educação que, além da formação fundamental, inclua a alfabetização e a qualificação profissional, voltada à convivência com o semi-árido e, em especial, com a gestão sustentável dos recursos hídricos; e a criação de formas e meios de ocupação da mão-de-obra não-especializada, oferecendo postos de trabalho alternativos, por meio de um programa de implementação de obras de infra-estrutura hídrica, produtiva, habitacional e social (cisternas, poços artesianos, açudes, canais de irrigação, construção e recuperação de escolas etc.) nas áreas de assentamento, comunidades rurais e periferia dos centros urbanos, com mão-de-obra local e utilizando recursos do BNDES, FGTS, FAT e Fundo Constitucional do Nordeste.
Como mudanças estruturais, propomos o mapeamento imediato do sertão, identificando as características específicas de cada região, de modo a orientar uma política de infra-estrutura hídrica de combate aos efeitos da seca; a criação, no âmbito do Conselho Curador do FGTS, de um grupo técnico especial para estudar a viabilidade de aplicação imediata de recursos do FGTS em obras de saneamento e combate à seca. Esse grupo técnico especial deveria, no prazo de 30 dias, apresentar um novo programa de financiamento, denominado Programa de Combate à Seca, introduzindo o Tesouro Nacional como tomador de empréstimo do Fundo para a realização de obras.
Queremos a revisão da utilização dos recursos do Fundo Constitucional do Nordeste, direcionando-os para a política de combate aos efeitos da seca, e que seja redirecionada a utilização dos recursos do BNDES para projetos de geração de emprego e renda, com prioridade ao financiamento das iniciativas de co-gestão, autogestão e cooperativas de produção.
Reivindicamos uma política ofensiva de democratização da terra, por meio de uma ampla reforma agrária, aliada a uma política agrícola orientada à agricultura familiar, e exigimos que haja a desapropriação das terras nas quais existam lençóis de água.
Propomos ainda a implantação de uma política industrial na qual as condições de trabalho sejam dignas e não ofensivas ao meio ambiente.
Por fim, pedimos que o governo federal faça um amplo e sério debate com a comunidade financeira internacional para utilizar os recursos que seriam destinados ao pagamento dos juros e do serviço da dívida externa para investimentos em política de combate aos efeitos da seca no Nordeste.
Essas propostas já foram entregues ao governo federal, nas mãos do ministro do Trabalho, Edward Amadeo.
Esperamos que o governo não tenha com o Nordeste uma postura meramente eleitoreira.

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