São Paulo, sábado, 11 de julho de 1998
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Haja moralidade

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

É comum ouvir, de agentes públicos, críticas ao comportamento fiscal dos cidadãos brasileiros, sobretudo dos da área do empresariado. Vez por outra sobram farpas para os advogados, quando se empenham em obter sentenças favoráveis a seus clientes para não pagarem tributos ou para obterem substanciais reduções. Nesses casos, sobram farpas até para o Judiciário.
Fora da área tributária, sobretudo em questões decorrentes do relacionamento com a administração pública, observa-se a mesma reação.
Os entes privados são, com frequência desagradável, observados pelos servidores oficiais como seres desmerecedores de maior confiança.
Nessas atitudes há dois paradoxos interessantes. Um é o de que acusações feitas a pessoas naturais e jurídicas de direito privado se destinam, com certa regularidade, a uma contrapartida desagradável: a obtenção de vantagens ilícitas. Ou seja: o alvo da crítica ao qual é imputada a infração, eventualmente criminosa, precisa participar de outro crime (o da corrupção) para livrar-se do primeiro.
Outro paradoxo está na resistência oposta pelo poder público em pagar o que deve. Receber de volta um real do poder público nos três níveis (União, Estados e municípios) ou qualquer outro crédito é tarefa de fazer inveja a Hércules. A administração não se envergonha de criar todos os obstáculos imagináveis para protelar o calote. Em correspondência recente para aposentados, Waldeck Ornélas, ministro da Previdência, disse que o governo paga aposentados e pensionistas em dia. Não paga. O INSS os caloteou depois da Carta de 88 e, condenado centenas de vezes, continua a opor recursos protelatórios, embora o antigo ministro, Reinhold Stephanes, tivesse prometido saldar os atrasados.
Em despacho recente, o ministro José Augusto Delgado, do Superior Tribunal de Justiça, traçou paralelo entre o direito de o fisco obter suspensão de liminares, ainda que em juízo provisório, e o direito subjetivo dos contribuintes de se livrar de ilegalidades oficiais. Nesses casos, diz Delgado, a garantia do cidadão está "hierarquicamente em escala de valor jurídico muito mais acentuado do que o direito de o fisco suspender o ato..." Outro dos motivos inspiradores do ministro do Superior Tribunal de Justiça foi o de que, se o contribuinte fosse compelido a recolher o imposto ao qual foi condenado na Justiça de seu Estado, teria "imensas dificuldades de restituição, em caso de procedência final da pretensão". Por tais motivos, José Delgado deu efeito suspensivo ao recurso especial interposto, impedindo a execução da cobrança fiscal na medida cautelar nº 1.294/MA.
A lição contida no despacho lembra São Francisco, o que educava pelo exemplo. Se a administração pública tivesse o comportamento ético que pretende exigir dos contribuintes, se seus agentes atuassem dentro da legalidade (mas não do legalismo), estaria contribuindo, pelo exemplo, para educar os demais. Transformando em selva a relação processual, administrativa ou judiciária, com o governo, o administrador público só pode encontrar, do outro lado do front, gente disposta aos mesmos preceitos. Não se quer dizer que contribuintes ou credores da administração sejam santos, mas o exemplo ético deve vir dos administradores, pois o que dizem e fazem se presume verdadeiro. A frase cínica dizia: "Haja moralidade, ou comamos todos". Na relação com o poder público, é modificável para: "Haja moralidade, e nos respeitemos, todos!".

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