São Paulo, segunda-feira, 13 de julho de 1998
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Quem vai ganhar a copa nacional da falsificação?

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

A falsificação de remédios é um crime novo nas páginas policiais. O Brasil está reagindo a ele de uma forma tradicional. Em primeiro lugar, o Congresso aprova uma lei transformando-o em crime hediondo; em seguida, o governo cria uma delegacia especializada em falsificação de remédios.
Essa tendência de acrescentar o adjetivo hediondo a um crime lembra-me um pouco os trens da Itália. Quase sempre um pouco atrasados, os trens foram mudando de nome para dar confiança ao passageiro: rápido, muito rápido, rapidíssimo. Claro que, se examinarmos a lei, vamos encontrar punições muito mais severas para crimes hediondos do que para crimes brandos ou crimes sem adjetivo.
Quanto à criação de uma delegacia, assim como a designação hediondo, é inegável que tem um apelo eleitoral imediato. Mas enfeixa uma ilusão de que as duas medidas combinadas possam resolver o problema.
O ministro José Serra chegou a anunciar a criação de uma agência que ampliaria o horizonte da vigilância sanitária. É um caminho interessante, partilhado por grandes autoridades no setor, como o diretor da Glaxo Wellcome, Jorge Raimundo, o único latino na direção mundial da empresa, para orgulho meu um amigo de infância.
Mesmo essa proposta é limitada. Era preciso constituir uma agência que abarcasse o campo dos remédios, cosméticos e alimentos, pois neste último setor reina também uma perigosa desordem. Na realidade, não existe nada mais auto-sustentável do que uma agência com essas características, pois os exames feitos para autorizar a comercialização de um produto podem ser pagos pelos próprios interessados.
O choque nacional com a falsificação de remédios tem uma repercussão profunda em nossa segurança psicológica. Amigos que têm pressão alta vêem, de repente, na TV, o nome de seu remédio na lista dos falsificados. Lembram-se imediatamente das crises de hipertensão em que o remédio parecia não fazer efeito. Como saber agora se a pressão não baixa porque há outros problemas ou se é preciso mudar de medicamento?
Um homem de 90 anos que tem câncer na próstata não sabe até que ponto resistiu por si mesmo, até que ponto foi ajudado pelos remédios. Nem se o mais interessante, no momento, não é jogar tudo para o alto e deixar que a vida siga seu fluxo, independente de médicos e medicamentos.
A agência precisaria avançar no campo dos cosméticos e dar uma olhada nas farmácias de manipulação, algumas verdadeiras armadilhas para o consumidor. Precisava deter o contrabando de anabolizantes usados por muitos produtores de carne e a superdosagem de antibióticos nos frangos de granja.
A criação de uma estrutura desse tipo não fala diretamente aos eleitores. No momento, é mais fácil e mesmo necessário prender e punir. Mas há inúmeros casos que transcendem a boa vontade de um delegado. É preciso pesquisar, organizar campanhas preventivas, preparar a população para que ela mesma possa se defender.
Os grandes problemas que explodiram na mesa da Vigilância Sanitária, no passado, foram provocados pela contaminação na água, em Pernambuco e no Rio. Nada se fez em escala nacional para checar a qualidade de nossa água.
Um diretor como Elisaldo Carlini, de competência internacionalmente reconhecida, foi sacrificado no governo Fernando Henrique só porque contrariou os argentinos ao buscar normas válidas para todo o Mercosul.
Por mais que Serra se movimente diante e por trás das câmeras, é inegável que o governo federal tem responsabilidade em tudo isso, pois decapitou a Vigilância Sanitária num momento de luta contra a burocracia, no auge de uma tentativa honesta de reorganizar esse trabalho áspero.
A cobertura jornalística é superficial, as necessidades de campanha pedem medidas de efeito, mas não custa nada esboçar uma solução estratégica. Senão, moralmente vamos ocupar o espaço dos coronéis que exploravam a indústria da seca. Tudo o que queriam eram secas periódicas, para que sua influência fosse confirmada. Na área da saúde, as tragédias ocupam o lugar da seca, e as medidas de efeito, a benevolência dos chefes políticos tradicionais.
Tanto o Congresso como o governo poderiam dar mais. Nada mais inseguro do que ver quadrilhas formadas por policiais ou remédios falsificados. São fatos que subvertem todo o esforço social. Se os remédios políticos também forem falsificados, aí então o desamparo das pessoas pode rapidamente se transformar em revolta e desespero. A essa altura, não sei quem ganhou a Copa do Mundo, mas chegou a hora de enfrentar a pedreira de nosso campeonato nacional de falsificação.

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