São Paulo, Sábado, 01 de Janeiro de 2000


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Filme mostra bug na cabeça

Divulgação
Fernanda Torres é Maria no filme de Walter Salles e Daniela Thomas sobre o esperado dia de hoje


PAULO VIEIRA
especial para a Folha

Em delírio, quase convulsionando, Velho (o desdentado Nelson Sargento) diz a João (o colosso paraibano Luís Carlos Vasconcelos), ambos numa cela suja de um presídio no centro do Rio: "Vai mudar tudo, João: o 1 vai virar 2, o 9 vai virar 0, o outro 9 vai virar 0 e o outro 9 vai virar 0".
Consta que dois dos maiores bancos brasileiros gastaram R$ 203 milhões para fazer frente à dificuldade que os computadores teriam para ler o último par de zeros do ano que enlouquece Velho.
Não se fala do bug em "O Primeiro Dia", o filme de Walter Sal-les/Daniela Thomas há dois meses em cartaz. Ao menos em sua definição mais exata, menos metafórica. Há lá um bug qualquer na cabeça dos personagens. Maria é abandonada pelo marido já que, como ele justifica num bilhete, "se há um dia para fazer alguma coisa, esse dia é hoje".
Maria então decide se suicidar, jogando-se do teto de seu predinho vizinho ao morro, e em meio ao foguetório do réveillon carioca. Escondido no teto, fugido do morro, onde fora liquidar um amigo de infância, João impede a queda de Maria e, abraçado a ela, empunhando o revólver, grita: "Ninguém morre mais".
O pulo entre o argumento e o roteiro do filme é pequeno. "O Primeiro Dia", não sou o primeiro a dizer, parece um curta-metragem. Tem, de fato, uma restrição de duração -o filme fora encomendado por uma TV francesa e teria de durar 60 minutos; em sua versão para cinema, ganhou 13 minutos- e o esquematismo de um curta. Seguimos João, seguimos Maria, ambos se encontram, vivem uma paralisação momentânea, improvável e poética do tempo, o filme acaba.
Mas é aí mesmo que é bastante cinema. O encontro de João e Maria, sob os fogos do Rio -cena filmada em tempo real, no revéillon carioca de 96-, tem enorme impacto visual. A câmera giratória aliada -dê-se também o crédito- à música é irresistível.
Não há sociologia, utopia, nada. O encontro impossível de um detento de classe baixa com uma professora de classe média arruinada não representa qualquer idéia de mobilidade social, nenhum sonho de comunhão rastaquera em homenagem ao terceiro milênio. Se o morro se encontra com Copacabana ou com a Gávea, é por meio de uma bala perdida, de um papelote de pó.
Talvez resida nessa ausência de ambições o mérito de "O Primeiro Dia". Salles/Thomas se recusaram ao apelo fácil do "todos somos um só". Thomas disse ter subido pela primeira vez o morro para as filmagens, a despeito do Chapéu Mangueira estar no coração da zona sul; Salles não se vexa em aparecer entre autoridades barrigudas -o presidente da República entre elas-, num pedaço de mar de acesso restrito.
Mas por que imaginar uma comunhão? Iria algum dia mudar tudo? Antes, quando calculávamos nossa idade no ano 2000, tudo parecia mágico, difuso. Hoje há mais jornalistas do que lunáticos em Jerusalém, e quem lê jornais no Brasil fica conhecendo o mesmíssimo imbecil norte-americano que trocou seu prado verdejante por uma casa palestina ansiando pelo apocalipse.
Há mais alguns desajustados espalhados por aí, alguns fizeram barulho recentemente em Seattle, tudo bem. Mas, infelizmente, a todos aqueles que esperamos tanto tempo para ver o 1 virar 2 etc., o que se avizinha é uma belíssima pasmaceira.
Walter Salles tem razão: as aguinhas mornas, calmas e protegidas do litoral recortado de Angra dos Reis são um cenário bem melhor para se passar este primeiro dia de 2000.


Avaliação:    


Filme: O Primeiro Dia Diretor: Walter Salles e Daniela Thomas Produção: Brasil, 1999 Com: Fernanda Torres, Matheus Nachtergaele, Nelson Sargento, Luís Carlos Vasconcelos Onde: Espaço Unibanco 3, às 15h (tel. 0/ xx/11/288-6780)

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