São Paulo, Sábado, 01 de Janeiro de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PRIMEIRO DIA
Diretor fala de sua visão otimista em relação à posição da cultura brasileira no ano 2000
WALTER SALLES
E a vida continua...


1º de janeiro de 2000. Pode-se entrever, pelo menos na área cultural, indícios de que é possível inventar aqui uma arte autônoma a partir de quase nada


"Vive-se hoje a negação de todas as coisas. Um desencantamento ou uma desesperança. Questionados sobre o que acreditam, os jovens respondem: em nada. Nosso século não tem forma. Nos apartamentos burgueses, todos os séculos se misturam. Sobram apenas restos, como se o fim do mundo estivesse próximo. Uma grande vitrine de ruínas. Tudo isso não é a vida. É apenas o eco da vida."
Ao contrário do que se poderia imaginar, o texto acima não é de um autor contemporâneo, nem descreve a mudança de século que acabamos de experimentar. Faz parte de "Confissão de um Filho do Século", do poeta e romancista francês Alfred de Musset, e refere-se ao início do século 19.
O texto de Musset é sintomático de um mal-estar que ressurge sempre que nos defrontamos com datas-chave. Uma doença de final (ou início) de século, a expressão de um vazio que acaba referendando a tese de que tudo já foi feito ou inventado.
Pessoalmente, estou cansado de tanto pessimismo. É um convite disfarçado à inação, à aceitação da repetição. Que tal o exercício oposto? Imagine, por um instante, que voltamos ao início do século 20.
Quem poderia pensar, naquele momento, que este seria o século de Einstein e Eisenstein, de "Luzes da Cidade" de Chaplin e do jazz de Miles Davis? Dos existencialistas, dos cubistas e dos construtivistas; da Revolução Russa, do Che e de Mao; do neo-realismo, da nouvelle vague e do cinema novo; de Gershwin, dos Beatles e de Antônio Carlos Jobim. E de Duchamp e Cage, que tudo desconstruíram para que tudo pudesse ser reinventado.
1º de janeiro de 2000. Pode-se entrever, pelo menos na área cultural, razões para algum otimismo. Indícios de que é possível inventar aqui uma arte autônoma a partir de quase nada, concretizando uma forma de expressão eminentemente brasileira e, por isso mesmo, universal.
Duas exposições de artistas plásticos brasileiros me transmitiram recentemente essa impressão. A primeira é a retrospectiva de Cildo Meireles no "Novo Museu de Arte Contemporânea", em Nova York.
Entrei na exposição de Meireles depois de percorrer dezenas de novas galerias de Chelsea, área onde são exibidos trabalhos de jovens artistas americanos e europeus -quase sempre obras intituladas... "sem título".
A retrospectiva de Cildo Meireles é uma ilha de invenção e sensibilidade em meio aos malabarismos estéticos que estão na ordem do dia.
Como nos haiku japoneses, tudo em Meireles é síntese e condensação, numa prova de que simplicidade e densidade não são mutuamente excludentes. As instalações mexem com camadas diversas da percepção -o olhar, o tato, o gosto. Os conceitos tradicionais de tempo e espaço, a própria organização do mundo segundo os princípios euclidianos são questionados.
Faz anos que não me sensibilizo tanto numa exposição. Há, nessa retrospectiva de Cildo Mereiles, um convite generoso à participação. E nenhum sarcasmo. Por isso mesmo, o espectador se sente parte de uma experiência única e reveladora.
Uma outra exposição de uma artista brasileira em um importante museu estrangeiro, dessa vez a de Ana Maria Pacheco na National Gallery de Londres, mostra que vai até o próximo dia 9, acaba confirmando a sensação de que, muitas vezes, temos mais a dizer do que as vozes que vêm de países ditos "desenvolvidos".
A exposição de Pacheco engloba um trabalho magistral de escultura e várias pinturas a óleo. A experiência para o visitante é novamente perturbadora. Reconhece-se a herança do Aleijadinho e referências à história recente do Brasil.
Mas há mais do que isso. Num artigo da revista "Modern Painters", o crítico George Szirtes esclarece: "Em tempos duros, a margem é, de longe, o lugar mais interessante -embora arriscado-para um artista estar. As sombras da margem são as únicas formas capazes de revitalizar o centro".
Para Szirtes, o "establishment" artístico do centro desconhece o nível de experiência proposto por Pacheco: "Esse "establishment" é como a ponta cega de uma cultura que não consegue nem mais cortar semolina. Em outras latitudes, a vida continua. Homens e mulheres vivem narrativas dramáticas, às vezes trágicas. Daí resultam linguagens cortantes e radicais. Isso as torna artisticamente relevantes, anuncia um novo significado? A resposta é sim, e sim".
Para que uma civilização (e não somente uma cultura) se estabeleça, é necessário que cada geração queira deixar algo para o futuro, sem pensar no seu benefício próprio e imediato. Talvez haja uma anunciação disso no barroco mineiro.
Os trabalhos de Meireles e Pacheco dão a impressão de que é possível avançar nessa direção, de que não somos uma civilização abortiva, que renega cronicamente a herança que cabe às próximas gerações.
Mãos à obra. E feliz Ano Novo.


Texto Anterior: "Castelo Rá-Tim-Bum", o filme, supera série de TV
Próximo Texto: Filme mostra bug na cabeça
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.