|
Texto Anterior | Índice
MOSTRA DE DRAMATURGIA CONTEMPORÂNEA
Abertura do ciclo sintetiza nova realidade com fuga da tradição
SILVIA FERNANDES
ESPECIAL PARA A FOLHA
A Mostra de Dramaturgia
Contemporânea permite
que os paulistas entrem em sintonia com a expressão mais recente
da realidade brasileira. Não por
acaso, um primoroso texto de
Fernando Bonassi abre o ciclo. Escrito em parceria com Victor Navas, "Três Cigarros e a Última Lasanha" funciona como síntese da
nova dramaturgia, cuja marca é o
mergulho na violência urbana e a
fuga dos modelos tradicionais.
O estilo seco e contundente, híbrido de drama e narrativa, molda o longo monólogo do protagonista anônimo, que lembra o acidentado de "Preso entre Ferragens", escrito por Bonassi em 90.
A peça é um relato distanciado,
feito em primeira pessoa, de um
narrador que incorpora personagens e situações à descrição do último almoço no restaurante costumeiro, quando cigarro e lasanha são interrompidos por um tiro que lhe decepa a mão. Sem
nunca esclarecerem o ocorrido,
mantendo a frieza no exame dos
fatos, trabalhando com lacunas
de informação que sequer permitem que o protagonista se pergunte quem atirou e por que, os
dramaturgos conseguem recriar o
clima de violência absurda, quase
casual, que todo morador de São
Paulo conhece bem.
A cirurgia providenciada pela
junta médica para implantar no
corpo da vítima a mão de um desconhecido é uma prótese literal de
estranhamento nessa narrativa
frenética da rejeição do outro.
A direção correta de Débora
Dubois, trabalhando com pontuais intervenções sonoras e luminosas, abre espaço para Renato
Borghi compor uma emocionada
interpretação de cunho realista,
que naturaliza o texto. O desenho
minucioso das motivações da
personagem e a fala sustentada
por subtextos são indicadores
precisos de um método de trabalho que dá bons resultados, mas
neutraliza a estranheza contemporânea da peça, providenciando
uma capa protetora para a agudeza do depoimento impessoal.
Neutralizado nessa cena, o
"desconforto narrativo" reaparece nos textos seguintes, de Marici
Salomão e Leonardo Alkmin, pela
intromissão de um dado estranho
em histórias aparentemente corriqueiras. Em "Remoto Controle", de Alkmin, o distanciamento
vem da amnésia inexplicável da
protagonista, que sugere uma impossibilidade de comunicação às
vezes explicitada em imagens gastas, como a da gaiola que impede
o pássaro de voar. Talvez na tentativa de contornar esse problema, a direção equivocada de Elias
Andreato transforma a peça numa chanchada, que não dispensa
nem a proverbial cadeira quase
atirada na cabeça das atrizes, ótimas na caricatura, especialmente
a hilariante Débora Duboc.
Em "O Pelicano", o diálogo de
surdos de um casal é contaminado pela simbologia da ave que rasga o ventre para alimentar os filhos, reflexo invertido da mesquinhez da relação. Na verdade, o tema e a forma da peça falam, mais
uma vez, do isolamento e da impossível solidariedade com o outro. A direção inteligente de Maurício Paroni de Castro dá tratamento cênico à temática ao aprisionar os protagonistas num bunker de intimidade que os isola numa rede de segurança e os distancia da rua, mas não impede a invasão da tragédia urbana.
O despojamento das atuações
de Luah Guimarães e Élcio Nogueira emociona e dá passagem à
crueza dessa dramaturgia, feita de
encomenda para atores que cultivam a ética e a simplicidade.
Silvia Fernandes é professora de história do teatro da ECA-USP
Mostra de Dramaturgia
Contemporânea
Quando: hoje, às 20h, e amanhã, às 19h
Onde: Teatro Popular do Sesi (av.
Paulista, 1.313, tel. 3284-3639)
Quanto: entrada franca
Texto Anterior: "O Carrasco": Peça é baseada na técnica do ator Índice
|