São Paulo, sábado, 01 de junho de 2002

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MOSTRA DE DRAMATURGIA CONTEMPORÂNEA

Abertura do ciclo sintetiza nova realidade com fuga da tradição

SILVIA FERNANDES
ESPECIAL PARA A FOLHA

A Mostra de Dramaturgia Contemporânea permite que os paulistas entrem em sintonia com a expressão mais recente da realidade brasileira. Não por acaso, um primoroso texto de Fernando Bonassi abre o ciclo. Escrito em parceria com Victor Navas, "Três Cigarros e a Última Lasanha" funciona como síntese da nova dramaturgia, cuja marca é o mergulho na violência urbana e a fuga dos modelos tradicionais.
O estilo seco e contundente, híbrido de drama e narrativa, molda o longo monólogo do protagonista anônimo, que lembra o acidentado de "Preso entre Ferragens", escrito por Bonassi em 90.
A peça é um relato distanciado, feito em primeira pessoa, de um narrador que incorpora personagens e situações à descrição do último almoço no restaurante costumeiro, quando cigarro e lasanha são interrompidos por um tiro que lhe decepa a mão. Sem nunca esclarecerem o ocorrido, mantendo a frieza no exame dos fatos, trabalhando com lacunas de informação que sequer permitem que o protagonista se pergunte quem atirou e por que, os dramaturgos conseguem recriar o clima de violência absurda, quase casual, que todo morador de São Paulo conhece bem.
A cirurgia providenciada pela junta médica para implantar no corpo da vítima a mão de um desconhecido é uma prótese literal de estranhamento nessa narrativa frenética da rejeição do outro.
A direção correta de Débora Dubois, trabalhando com pontuais intervenções sonoras e luminosas, abre espaço para Renato Borghi compor uma emocionada interpretação de cunho realista, que naturaliza o texto. O desenho minucioso das motivações da personagem e a fala sustentada por subtextos são indicadores precisos de um método de trabalho que dá bons resultados, mas neutraliza a estranheza contemporânea da peça, providenciando uma capa protetora para a agudeza do depoimento impessoal.
Neutralizado nessa cena, o "desconforto narrativo" reaparece nos textos seguintes, de Marici Salomão e Leonardo Alkmin, pela intromissão de um dado estranho em histórias aparentemente corriqueiras. Em "Remoto Controle", de Alkmin, o distanciamento vem da amnésia inexplicável da protagonista, que sugere uma impossibilidade de comunicação às vezes explicitada em imagens gastas, como a da gaiola que impede o pássaro de voar. Talvez na tentativa de contornar esse problema, a direção equivocada de Elias Andreato transforma a peça numa chanchada, que não dispensa nem a proverbial cadeira quase atirada na cabeça das atrizes, ótimas na caricatura, especialmente a hilariante Débora Duboc.
Em "O Pelicano", o diálogo de surdos de um casal é contaminado pela simbologia da ave que rasga o ventre para alimentar os filhos, reflexo invertido da mesquinhez da relação. Na verdade, o tema e a forma da peça falam, mais uma vez, do isolamento e da impossível solidariedade com o outro. A direção inteligente de Maurício Paroni de Castro dá tratamento cênico à temática ao aprisionar os protagonistas num bunker de intimidade que os isola numa rede de segurança e os distancia da rua, mas não impede a invasão da tragédia urbana.
O despojamento das atuações de Luah Guimarães e Élcio Nogueira emociona e dá passagem à crueza dessa dramaturgia, feita de encomenda para atores que cultivam a ética e a simplicidade.


Silvia Fernandes é professora de história do teatro da ECA-USP


Mostra de Dramaturgia Contemporânea
   
Quando: hoje, às 20h, e amanhã, às 19h
Onde: Teatro Popular do Sesi (av. Paulista, 1.313, tel. 3284-3639)
Quanto: entrada franca



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