São Paulo, sábado, 03 de fevereiro de 2007

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Crítica/teatro

Elenco salva montagem "careta" de "Volta ao Lar"

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

As peças de Harold Pinter são como pedras lisas molhadas: de uma traiçoeira simplicidade. Seus diálogos não têm subtexto e suas tramas trincham cenas banais do cotidiano até elas parecerem inverossímeis. Em "Volta Ao Lar", um homem volta à sua família decadente para apresentar sua esposa. Depois de anos de ausência, já não se identifica com a vulgaridade de suas origens: um pai brutal, um irmão amargo e invejoso, e o mais novo, boxeador, quase limítrofe. Um tio motorista poderia trazer alguma delicadeza, mas também está imerso em mediocridade.
Quando o filho pródigo, ressabiado, mas orgulhoso, apresenta sua mulher, seu grande prêmio por ter se tornado um professor universitário, ela é tratada como prostituta e corresponde ao papel atribuído. Simples assim. Não é trazido nenhum segredo do passado para justificar essa reação e, se Pinter flerta com algumas reviravoltas de melodrama, isso é tratado em chave paródica, com humor inglês: ninguém perde a fleuma e segue a mesquinharia do cotidiano.
Desta forma, muito está nas costas da montagem: o texto pode ser transformado em um pesadelo kafkaniano ou em uma piada ao estilo do Monty Python. Alexandre Reinecke opta pela quase sitcom (que se desvencilha da responsabilidade de cavar mais fundo) e se sai com a habilidade de sempre.
Aproveita, por exemplo, as particularidades do espaço cênico do Tucarena para concretizar as referências do texto aos "quartos de cima", sem se preocupar com nenhuma leitura simbólica -não faz pose de diretor intelectual.
Seu grande trunfo é a escalação do elenco. Antônio Petrin tem a energia e o carisma necessários para o pai: é feroz como um javali, mas um javali que cozinha para a família e com quem ela tem que jantar todas as noites. Eucyr de Sousa, o irmão do meio, faz um contraponto eficaz, com uma concentrada insolência que o livra de ficar na sombra do pai. De seu lado, Jorge Cerruti tem quilometragem teatral e presença cênica à altura de Petrin, indispensável para tornar interessante seu Tio Sam. Gustavo Haddad, o caçula atleta Joey, tira partido de seu tipo físico com inteligência, para fugir da competição de egos fortes.
Renato Modesto chega, assim, em uma cena bem aquecida, e pode fazer uma interpretação mais interiorizada, quase frágil: atirado às feras, erra apenas quando procura fugir ao patético com um reiterado gesto psicológico grandiloqüente e injustificado. Ester Laccava faz Ruth, a esposa imprevisível, chave do estranhamento. Há dois grandes modos de construir o personagem: ou como a dama que se deixa encanalhar por impulso irresistível, o que faz a peça ser mais perturbadora, ou como uma puta que não se esforça em colaborar com a farsa do irmão que volta. Aqui, a clara opção é pela vulgaridade, o que deixa Laccava à vontade e faz com que seu desempenho seja eficiente, sem desafiá-la.
É o caso geral, no fundo, das interpretações da montagem: conhecedores de Pinter irão sentir a falta de um tempo mais lento, com suas características pausas ao mesmo tempo sufocantes e hilárias. Muitas vezes, há a impressão de texto recitado, além de descuido com a tradução (temos direito a um "me dá uma fumaça" logo nos primeiros minutos) e uma trilha sonora aleatória.
Com esse texto e esse elenco, Reinecke poderia fazer melhor, talvez. Faz o suficiente. Não cabe à crítica exigir que se arrisque mais aquele que tem tanta habilidade nas fórmulas garantidas do teatro comercial.


VOLTA AO LAR    
Quando: qui., às 20h; sex. e sáb., às 21h; dom., às 19h; até 1º/4
Onde: Tucarena (r. Monte Alegre, 1.024, Perdizes, tel. 3670-8455)
Quanto: de R$ 10 (qui.) a R$ 40


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