São Paulo, sábado, 03 de julho de 2004

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"MAL SECRETO - A VIDA AMOROSA DE OFÉLIA"

Peça arrisca com inventividade, mas peca em atuação

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Duas metáforas articulam "Mal Secreto - A Vida Amorosa de Ofélia": o pega-pega e o espelho. Logo na primeira imagem, Hamlet e Ofélia se perseguem pelos corredores do palácio -as dez portas do hall do espaço da Cultura Inglesa, que tem assim sua inadequação para o teatro surpreendentemente convertida em virtude.
O texto sofisticado de Steven Berkoff se coloca assim imediatamente também como uma busca: a de uma forma baseada na performance dos atores (o que vem se conceituando como "teatro físico") para conter um texto arriscadamente literário, já que não há diálogos, apenas cartas ditas em voz alta.
Se esse teatro epistolar remete ao desejo apodrecido das "Ligações Perigosas", de Laclos, Berkoff conta por outro lado com o conhecimento prévio por parte do público da trama original do Hamlet shakespeariano.
Na contramão de uma tendência atual de politizar peças de Shakespeare "de amor", como "Romeu e Julieta" ou "Otelo", o autor inglês aqui romantiza uma peça eminentemente política. Hamlet e Ofélia são ressaltados em seu desamparo amoroso: são como Romeu e Julieta sem Ama nem Frei, adolescentes tentando recuperar o vigor do verbo elisabetano em chats eróticos da internet.
Os dois combinam assim se desprezarem em público, ridicularizam os pais, até perderem o controle da situação, e a loucura é o preço a pagar de um desejo impossível de ser acolhido pela podre Dinamarca. Como se vê, uma bela contribuição para a exegese de "Hamlet".

Inventividade
A densidade poética é bem recuperada pela tradução de Luiz Fernando Ramos, e a direção de Beth Lopes é de uma inventividade extraordinária. Arrisca-se, como sempre fez, a deixar a responsabilidade sobre os atores. Essa coragem, e o bom embasamento da proposta, proíbe no entanto qualquer condescendência, e é preciso dizer que a performance dos atores é ainda imatura.
Clarisse Kiste se mantém plausível na sexualidade adolescentemente desesperada de Ofélia: sempre sensual, às vezes comovente, quase que literalmente carrega um piano em cena, crucificando-se em seu colchão e afogando-se narcisicamente em seu espelho, em uma dinâmica na qual o cenário da diretora dialoga intimamente com a bela luz de Marisa Bentevegna -operada pelos atores em cena- e a elegante trilha original de Marcelo Pellegrini.
O espelho, no entanto, prejudica bastante Theodoro Cochrane. Aplicando-se em realizar sua complicada partitura de gestos, deixa escapar seu depoimento pessoal sobre a solidão de Hamlet e contracena pouco com Kiste. Contar uma história por meio de cartas é tarefa difícil e várias vezes se perde o fio da meada.
O espetáculo "Mal Secreto", assim, acaba se sustentando em uma série de achados cênicos, que atores mais experientes teriam incorporado melhor. O gesto de apontar rouba o foco da direção apontada, a busca é ofuscada pelo narcisismo -mas são esses os nobres riscos do teatro experimental.


Mal Secreto - A Vida Amorosa de Ofélia
  
Texto: Steve Berkoff
Direção: Beth Lopes
Com: Clarissa Kiste, Theodoro Cochrane
Onde: Cultura Inglesa - Higienópolis (av. Higienópolis, 449, Higienópolis, região central, tel. 3826-4322)
Quando: sex. e sáb., às 21h; e dom., às 19h; até 25 de julho
Quanto: R$ 20



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