São Paulo, Quarta-feira, 04 de Agosto de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA/CRÍTICA
"Uma Carta sem Palavras" une duas gerações

ESTHER HAMBURGER
especial para a Folha

Ella Lewenz, nascida Arnhold, em 1883, na Alemanha, era uma cineasta amadora.
Senhora burguesa, casada com um empresário da indústria telefônica, mãe de seis filhos, Ella não se separava da filmadora com a qual retratou com força e sensibilidade fragmentos da vida na Alemanha de Hitler.
Escondidos em uma caixa no sótão da casa de seu filho na América, os rolos de filme trouxeram à tona o passado, 50 anos depois, quando foram encontrados pela neta. Essa neta é Lisa Lewenz, autora de "Uma Carta sem Palavras", que o Festival de Cinema Judaico exibe hoje, às 19h, no MIS - Museu da Imagem e do Som.
No filme sobre os filmes, neta e avó se relacionam na linguagem proposta pela mais velha.
"Uma Carta sem Palavras" foi feito para televisão, co-produzido pelo Serviço Independente de Televisão Pública (ITVS), exibido em cadeia nacional pela rede PBS e badalado em fóruns de cinema como o Sundance, Berlim e Vancouver. Trata-se de um "documentário subjetivo", no qual a diretora-personagem reflete sobre o legado de sua família.
Até os 13 anos, Lisa foi criada na religião episcopal, sem consciência de sua origem judaica. O contato com o passado judeu-alemão de pessoas que se queriam mais patriotas do que religiosas, e que foram pegas de surpresa pela ascensão de Hitler, sensibilizou a jovem americana.
Os filmes de Ella Lewenz são reveladores pelo que exibem e pelo que omitem. Ella dominava a linguagem cinematográfica e registrou com maestria a vida familiar nos recantos e momentos que a iluminação natural permitia.
A senhora berlinense filmou o exterior da casa da família, a vila no campo, festas dançantes no jardim, jogos de tênis, ski, viagens turísticas a Paris, Palestina, Egito, a convivência com amigos intelectuais e famosos, como o cientista Albert Einstein ou a atriz Brigitte Helm.
Não há registro de cerimônias religiosas. As imagens de família retratam traços castanho-escuros, marca corporal indelével, que os distingue e exclui da comunidade alemã construída pelos nazistas como essencialmente ariana, de cores claras, ironicamente recessivas.
Ella começou fazendo uma espécie de diário da vida privada. Com o tempo, seu olhar se desloca e ela passa a focalizar um tabu que não se verbalizava: o crescimento da opressão contra os judeus em locais públicos.
Placas nos parques, nas estradas e nas piscinas sinalizam o que era e o que não era permitido. A suástica ocupa as ruas.
Ella Lewenz continuou a filmar, clandestinamente, mesmo depois que o cinema amador foi proibido, em 1933. Viajou de navio para a América munida da câmera com a qual registrou a chegada a Manhattan. Registrou a devastação da Alemanha no pós-Guerra, onde foi se despedir dos amigos. Em seu filme sobre o material da avó, Lisa refez o percurso de Ella, reconstruiu seus enquadramentos.
A neta busca o colapso da distância temporal na coincidência espacial da câmera. O olhar silencioso e sensível de Ella representa um nexo na cadeia genealógica, um nexo capaz de iluminar filiações ocultas nas diásporas e deslocamentos contemporâneos.


Texto Anterior: Música erudita: Mirella Freni canta no Municipal
Próximo Texto: Documentário traz irritação beat
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.