|
Próximo Texto | Índice
RETROSPECTIVA
Obra do documentarista traz filmes como "Cabra Marcado para Morrer", que levou 20 anos para ser finalizado
Coutinho sintetiza moderno cinema brasileiro
Divulgação
|
Cena do filme "Boca do Lixo", do cineasta Eduardo Coutinho, que é tema de retrospectiva no Centro Cultural Banco do Brasil |
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
O percurso da obra de
Eduardo Coutinho, tema da
retrospectiva que estréia no Centro Cultural Banco do Brasil, sintetiza a evolução (dialógica) do cinema moderno brasileiro. Esse
percurso, sempre norteado por
um aprimoramento do diálogo
entre o cineasta-intelectual de
classe média e o povo, já se encontra sintetizado, por sua vez, em
"Cabra Marcado para Morrer",
filme iniciado em 1964 e finalizado 20 anos depois.
Não tivesse sido interrompido
pelo golpe militar de 64, "Cabra"
talvez não passasse hoje de uma
curiosidade de cinemateca, mais
uma datada produção do CPC
(Centro Popular de Cultura) da
UNE, com seus defeitos característicos: visão extrínseca da cultura popular, roteiros didáticos, esquemáticos e sociologizantes. "Eu
não sabia dirigir os atores, o diálogo era banal, e o roteiro, cheio de
"barrigas", convencional, com personagens muito tipificados", diria
mais tarde Coutinho sobre a ficção meio neo-realista que começara a rodar com os companheiros de CPC em torno da morte do
líder da Liga Camponesa de Sapé.
Morte que prefigurou o golpe.
Enquanto a ditadura brasileira
passava de envergonhada a escancarada, a euforia utópica do
intelectual nacional-popular cedia lugar ao desencanto. Frustrado em seu devir revolucionário, o
intelectual mergulha na crise. Sua
relação com o povo torna-se conflitante. É o momento de "Terra
em Transe" e de um Glauber desesperado com a constatação de
que o povo não passava de uma
idealização sua. É o momento da
"crise das totalizações históricas",
segundo as insubstituíveis palavras de Ismail Xavier.
Mas a reconciliação não tarda:
por volta dos anos 70, os cineastas
brasileiros passam a compreender que sua tarefa não é impor
uma visão de mundo ao povo ou,
como diziam, despertar-lhe a
consciência, mas simplesmente
ceder-lhe a palavra, possibilitar-lhe a expressão. O cinema nacional passa a exprimir uma visão
menos extrínseca da cultura popular. É por essa época que Coutinho migra para a televisão, iniciando o seu namoro com o documentário (e o cinema-direto),
tendo ao lado o câmera Dib Lutfi,
o homem-grua do cinema novo.
É a época de um certo ideal perdido da TV brasileira, de um
"Globo Repórter" que produzia
filmes como "Teodorico, o Imperador dos Sertões", de Coutinho e
Lufti, e "Wilsinho da Galiléia", de
João Batista de Andrade.
No início dos anos 80, renovado
por sua experiência como repórter televisivo e pelo início da abertura política do país, Coutinho resolve enfrentar os fantasmas de
seu projeto inacabado. Leva aos
sobreviventes os poucos fragmentos do filme original que conseguiu recuperar e tenta recompor com eles uma história que, a
essa altura, já é tanto do cineasta
quanto das personagens. Uma
história que, erigida sobre uma
elipse de 20 anos de ditadura, já
não é senão a do próprio país.
Coutinho já não olha pelo olho
da câmera (com o olhar extrínseco dos tempos de CPC), mas diretamente, dentro do filme, nos
olhos dos (outros) personagens,
dialogando com eles de igual para
igual. Tendo vivenciado ele próprio a opressão política, o intelectual pode se sentir enfim irmanado ao "povo oprimido".
O método que Coutinho passa a
desenvolver a partir daí não visa
senão a retomar essa experiência.
De "Santa Marta - Duas Semanas
no Morro" (1985) a "Babilônia
2000", de "Boca do Lixo" (1993) a
"Santo Forte" (1999), ele só faz
aprimorar sua abordagem, em
busca de diálogos mais justos (para ambas as partes), de encontros
mais ricos. Se em "Santa Marta",
talvez mais interessado na comunidade do que nos indivíduos, o
cineasta protagoniza encontros
mais curtos, mais editados, em
seus filmes mais recentes a ciência
e a paciência de Coutinho extraem das pessoas puros atos de
fala. Lição de simplicidade, tanto
ética quanto estética, sua obra é a
história de uma geração que soube restituir a palavra ao povo.
Próximo Texto: Erudito: Duas semanas de guerras e charmes da música Índice
|