São Paulo, Quarta-feira, 05 de Maio de 1999
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CINEMA - CRÍTICA
Em "Orfeu", morro vive apenas de ilusões

Divulgação
Stephan Nercessian em cena do filme "Orfeu", de Cacá Diegues


INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Desde que Humberto Mauro subiu o morro para filmar "Favela dos Meus Amores", em 1935, a questão não deixa de retornar: como representar a favela, esse quisto de pobreza encravada no meio da riqueza do Rio de Janeiro.
A favela é um paradoxo, porque, apesar da miséria, não deixa de embelezar a natureza mais bela do planeta Terra. E porque, apesar da miséria, existe ali uma poesia incontestável.
Poesia primeiro de tudo geográfica: a favela descreve um movimento ascendente, como se aspirasse à superação ("pois quem mora lá no morro já vive pertinho do céu", diz a música).
Ora, "Favela dos Meus Amores" perdeu-se (incendiou-se, na verdade), e hoje em dia ninguém sabe como era o morro mauriano, o que não impediu que vários outros cineastas o abordassem, nos mais diversos registros.

Alegoria
Não é de espantar que a carreira de Carlos Diegues comece, aliás, com um dos episódios de "Cinco Vezes Favela", justamente o que se chama "Escola de Samba, Alegria de Viver" -como a antecipar o crônico otimismo de seus filmes futuros e o espírito escola de samba que os move.
Porque o cinema de Diegues quase nunca aspira ao realismo, mas à alegoria. Menos alegoria como forma de driblar a censura (como era frequente no tempo do regime militar) e mais no sentido Joãosinho Trinta da palavra: esses enfeites, esses penduricalhos com que o imaginário das escolas alça vôo, escorraçando a realidade durante o Carnaval.
Também os enredos de Diegues assemelham-se com frequência mais a enredos de escolas do que a enredos de cinema: eles obedecem à lógica do desenrolar das alas na avenida antes de obedecer à lógica de construção dos roteiros de cinema.
Isso não significa que os seus filmes sejam bons por isso. Ou que sejam bons simplesmente. Como nos desfiles, há os encantadores e os frustrantes. O fato é que esse tipo de construção sempre produziu um curto-circuito sensacional em São Paulo, cidade de poucos morros, avessa ao samba e com uma rígida distância entre pobres e ricos (os primeiros confinados à periferia).
Essa longa introdução serve para situar o clima de "Orfeu", filme atualmente nos cinemas, que me parece o trabalho mais forte de Diegues desde o remoto "A Grande Cidade", dos anos 60.
Se isso acontece é, em parte, porque o enredo desta vez não é outro senão a própria escola de samba. É em torno dela, e de Orfeu, compositor do morro, que se desenvolve a história, em pleno Carnaval.
A favela de Diegues existe? Sim e não. Sim: todo o tecido social que ali se forma -dos traficantes aos crentes, dos sambistas às costureiras- é contemplado, e ninguém dirá que de maneira ingênua. Existe uma promiscuidade -digamos assim- nas relações sociais que iguala poetas e traficantes, bandidos e mocinhos, e torna o bem e o mal bem mais contíguos do que nas situações clássicas.
Ao mesmo tempo, não: a harmonia das cores berrantes, a limpeza das ruelas da favela são dignas de um samba-enredo, não de uma representação realista da favela.
O drama de "Orfeu", no mais, é precisamente este: estar suspenso entre dois mundos, o da fantasia e o da realidade -um sublime, outro sórdido, pois desta vez o enredo de Diegues é a própria escola -sua beleza aparente e seus bastidores trágicos.
As escolas de samba, como sabemos, são entidades mitificadoras, o que torna ainda mais apaixonante a empreitada, já que Orfeu começa por ser um mito grego, torna-se mito do cinema, pelas mãos de Jean Cocteau, transita ao teatro, com Vinicius de Moraes, retorna ao cinema com "Orfeu Negro", de Marcel Camus (filme que fixou certa mítica do Brasil no exterior), na condição de mito negro.
"Orfeu" transita por essas camadas e lhes acrescenta algumas outras, como o Rio -com sua beleza geograficamente tormentosa, nunca monótona, dotada de uma exuberância única (o que parece ser uma retificação do Rio tão estrangeiro que se vê em "Orfeu Negro").
Existe ainda a sensualidade, que está na paisagem, mas também nos personagens, no desfile de Carnaval, no som dos instrumentos, nos figurinos e na cenografia -cuja exuberância, embora enorme, nem por isso é invasiva.
Está, por fim, na figura tão contestada de Toni Garrido, o Orfeu da história, que é homem, poeta, semi-deus afro-brasileiro, personificação de sincretismos não só religiosos, como sonoros, plásticos, semi-deus condenado a viver à beira do abismo, a transitar entre o céu (do amor, do desfile) e o inferno (esse abismo espantoso onde recolherá o corpo morto de Eurídice, digno de filme de Zé do Caixão). Um inferno que, não por acaso, se situa ao nível do solo.
Porque tudo em "Orfeu" é uma questão topográfica. Assim como o morro, a favela, existe na confluência entre céu e inferno, os seres que Carlos Diegues nos mostra parecem existir um palmo acima do solo, levitando acima da vida real, num universo de pura fantasia, antes de serem projetados ao inferno da altitude zero. Ao "asfalto", como se dizia antigamente, onde jazem as almas penadas, o cotidiano, o não-samba, a não-escola.
Visão idealizada do mundo? Com certeza. Basta observar o plano mais impressionante do filme, tomado de helicóptero. No início, vemos uma imagem indistinta, quase plana, clara, como uma formação rochosa. Aos poucos, o aparelho busca outro ângulo, e progressivamente nos é dado ver outro relevo, outra profundidade, os tetos distinguem-se da base dos casebres, entre elas desenham-se as ruelas.
É como se Diegues resumisse ali o seu filme, nos lembrando de que o olhar é uma ilusão e que, como diria Frank Capra, de ilusão também se vive. Ou antes, para os parâmetros do morro, só se vive de ilusão. O resto é morte.
Enquanto ela não chega, nesse breve interregno entre o sábado de Carnaval e a Quarta-Feira de Cinzas, existe o precário triunfo da criação e da paixão sobre o nada nessa refavela apaixonada, onde Diegues reata o fio amoroso do cinema de Humberto Mauro, isto é, do cinema brasileiro.


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