São Paulo, quinta-feira, 06 de abril de 2000


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MÚSICA ERUDITA
A música é linda, a Rússia vai mal

ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas

Que um som possa expressar uma personalidade é um mistério. Que um som possa expressar uma cultura é outro mistério, ainda maior. O som da Rússia encheu o teatro Cultura Artística, na estréia da temporada, anteontem. O programa tinha ambições mais altas; mas a apresentação do Coro de Câmara de Moscou, acompanhado pela Orquestra da Rádio de Moscou, sob a regência de Saulius Sondeckis, converteu-se involuntariamente em folclorismo, no pleno reino da música clássica.
O som russo é, acima de tudo, o das vozes russas: baixos profundíssimos, contraltos expressivas, suspensões dissonantes e o ritmo no pulso das palavras. Tudo isso se ouviu nas peças para coro que abriram a noite, dando um panorama do repertório. Do barroco Titov aos compositores do século 20 Chesnokov, Gretchaninov e Strumsky, a música tem sua base no canto ortodoxo, recriado com acentos diversos. Regido por seu fundador, Vladimir Minin, o coro cantou forte, direto, para fora, sem delírios nem delícias.
Solistas: "canto russo", cheio de consoantes pronunciadas ("Ggggospody"). As letras fizeram falta; mas "Gospody" ("Senhor") talvez baste, para indicar um sentido que se deixa adivinhar com ou sem língua.
As missas de Schubert (1797-1828) são até hoje pouco tocadas, fora de Viena. A "Missa nº 2" é um lindo exemplo dessa música religiosa do jovem (18 anos) compositor, que, nesse ponto, ainda se deixa tomar muito pelo espírito de Mozart. O maestro lituano Sondeckis regeu a "Missa" com segurança, mais do que inspiração. A orquestra não ajudou: "som russo", nesse caso, é sinônimo de estilo gasto, interpretação pesada, conjunto inexato.
Mesmo assim, houve momentos de música memorável, como no "Agnus Dei", onde as notas (fortes, diretas, para fora) da soprano Lolita Sememina deram um tom comovido ao que é frágil, indireto e para dentro.
Na segunda parte, o coro voltou de dourado; mas o "Glória" de Vivaldi soou virtualmente igual a Schubert. Parece estranho um barroco tão alheio a qualquer interesse pela ornamentação e as técnicas de fraseado que mudaram o conceito dessa música nos últimos 30 anos. Tem seus encantos, mas o resultado é pouco convincente. A música não fica mais direta; só faz menos sentido. Fica devendo o barroco do barroco.
Um teclado eletrônico fez as vezes de cravo/órgão. Pelo menos foi discreto. Enfim: valeu a pena? Quase tudo vale a pena, se a alma não for muito pequena. A música é linda; a Rússia vai mal; e há uma beleza particular nesses músicos fazendo arte russa, apesar de tudo. É como se o verdadeiro concerto nem tivesse a ver com Schubert e Vivaldi. É uma lição de outra ordem; uma das tantas que a música pode dar, para além de concertos de música.


Avaliação:   


Concerto: Orquestra da Rádio de Moscou e Coro de Câmara de Moscou, regente S. Sondeckis Programa: Mozart ("Vésperas"), Pergolesi ("Stabat Mater") Quando: hoje, às 21h Onde: teatro Cultura Artística (r. Nestor Pestana, 196, tel. 258-3616)
Quanto: R$ 80 a R$ 190. Estudantes, R$ 10, meia-hora antes


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