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MÚSICA ERUDITA
A música é linda, a Rússia vai mal
ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas
Que um som possa expressar
uma personalidade é um mistério. Que um som possa expressar
uma cultura é outro mistério, ainda maior. O som da Rússia encheu o teatro Cultura Artística, na
estréia da temporada, anteontem.
O programa tinha ambições mais
altas; mas a apresentação do Coro
de Câmara de Moscou, acompanhado pela Orquestra da Rádio
de Moscou, sob a regência de Saulius Sondeckis, converteu-se involuntariamente em folclorismo,
no pleno reino da música clássica.
O som russo é, acima de tudo, o
das vozes russas: baixos profundíssimos, contraltos expressivas,
suspensões dissonantes e o ritmo
no pulso das palavras. Tudo isso
se ouviu nas peças para coro que
abriram a noite, dando um panorama do repertório. Do barroco
Titov aos compositores do século
20 Chesnokov, Gretchaninov e
Strumsky, a música tem sua base
no canto ortodoxo, recriado com
acentos diversos. Regido por seu
fundador, Vladimir Minin, o coro
cantou forte, direto, para fora,
sem delírios nem delícias.
Solistas: "canto russo", cheio de
consoantes pronunciadas
("Ggggospody"). As letras fizeram falta; mas "Gospody" ("Senhor") talvez baste, para indicar
um sentido que se deixa adivinhar com ou sem língua.
As missas de Schubert (1797-1828) são até hoje pouco tocadas,
fora de Viena. A "Missa nº 2" é
um lindo exemplo dessa música
religiosa do jovem (18 anos) compositor, que, nesse ponto, ainda se
deixa tomar muito pelo espírito
de Mozart. O maestro lituano
Sondeckis regeu a "Missa" com
segurança, mais do que inspiração. A orquestra não ajudou:
"som russo", nesse caso, é sinônimo de estilo gasto, interpretação
pesada, conjunto inexato.
Mesmo assim, houve momentos de música memorável, como
no "Agnus Dei", onde as notas
(fortes, diretas, para fora) da soprano Lolita Sememina deram
um tom comovido ao que é frágil,
indireto e para dentro.
Na segunda parte, o coro voltou
de dourado; mas o "Glória" de Vivaldi soou virtualmente igual a
Schubert. Parece estranho um
barroco tão alheio a qualquer interesse pela ornamentação e as
técnicas de fraseado que mudaram o conceito dessa música nos
últimos 30 anos. Tem seus encantos, mas o resultado é pouco convincente. A música não fica mais
direta; só faz menos sentido. Fica
devendo o barroco do barroco.
Um teclado eletrônico fez as vezes de cravo/órgão. Pelo menos
foi discreto. Enfim: valeu a pena?
Quase tudo vale a pena, se a alma
não for muito pequena. A música
é linda; a Rússia vai mal; e há uma
beleza particular nesses músicos
fazendo arte russa, apesar de tudo. É como se o verdadeiro concerto nem tivesse a ver com Schubert e Vivaldi. É uma lição de outra ordem; uma das tantas que a
música pode dar, para além de
concertos de música.
Avaliação:
Concerto: Orquestra da Rádio de
Moscou e Coro de Câmara de Moscou,
regente S. Sondeckis
Programa: Mozart ("Vésperas"),
Pergolesi ("Stabat Mater")
Quando: hoje, às 21h
Onde: teatro Cultura Artística (r. Nestor
Pestana, 196, tel. 258-3616)
Quanto: R$ 80 a R$ 190. Estudantes, R$
10, meia-hora antes
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