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São Paulo, terça-feira, 08 de abril de 2003

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MÚSICA ERUDITA/CRÍTICA

Ópera composta em 1926 por Igor Stravinsky terá nova versão em junho na Sala São Paulo

A cigana de Andaluzia e o rei cego de Tebas

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Ao investigar uma morte, o detetive descobre que ele mesmo é o assassino e que o morto era seu pai. Como se não bastasse, sua atual mulher é a viúva, sua mãe. Grande idéia para um romance policial: pena que já tenha sido antecipada por Sófocles. Recriada, depois, por Freud, virou parte da mitologia e se trivializou. Tanto maior, então, o impacto de escutar o "Édipo-Rei" de Stravinsky (1882-1971), onde os sentidos da tragédia se reanimam noutro tom, como a Osesp fez ouvir na Sala São Paulo, sábado, sob a regência de Roberto Minczuk.
A ópera-oratório foi composta em 1926, para comemorar os 20 anos de atividade dos Balés Russos de Diaghilev, em Paris. (Foi Diaghilev quem encomendou as partituras de "Petrouchka" e "A Sagração da Primavera", entre outras). O empresário não se impressionou muito com "Édipo", para ele "macabro demais". Reconhecida como obra-prima do período neoclássico de Stravinsky, até hoje não chega a ser tão conhecida como devia.
Glória à cidade de São Paulo, onde se vai escutar duas versões neste ano (a segunda em junho, com a Orquestra Experimental de Repertório).
O libreto do poeta Jean Cocteau foi traduzido para o latim a pedido de Stravinsky. Cabe a um narrador explicar a ação na língua da platéia; papel difícil, fadado a maneirismos. O mínimo que se pode dizer de Walmor Chagas é que foi um narrador impecável: sóbrio, sem formalismo, projeção claríssima da voz. A cabeleira branca contrastava com a roupa escura e o lenço preto no bolso parecia tão apropriado quanto a postura levemente curva desse Sófocles-Cocteau, aparecendo ora de um lado, ora de outro, em contraponto com a humanidade fixa do coro masculino.
Alguém saberá dizer o máximo da mezzo-soprano Renate Springler, encarnando Jocasta. Matar o pai talvez seja um preço alto; mas quem não queria casar com uma mãe dessas? Elegante e contida no cinza do vestido, exibia uma mecha susansontaguiana na testa com a mesma bravura da fenda lateral na perna e dos intervalos expressivos de sua ária.
O corpulento Édipo de Michael König formava com ela um par visualmente insólito, mas musicalmente certeiro. Era um rei ao mesmo tempo cheio de si e aberto às dúvidas. Cantou o "c" latino como "q" (não "tch"); detalhe que reflete o vigor ascético da montagem. Cena final: Édipo mudo e combalido, apoiado no bom pastor de Marcos Thadeu, no alto da escada do coro, exposto ao mundo na luz vermelha dos olhos encharcados de sangue.
Com tanto assunto, a gente acaba deixando de comentar o "Amor Bruxo" de Manuel de Falla (1876-1946), que a orquestra tocou na primeira parte, com a solista Denise de Freitas. Estranho ver "Joãozinho" (da ópera "João e Maria") de volta à cena tão rápido, como cigana fatal. Estranho também escutar esse vozeirão grave e mediterrâneo saindo da garganta de uma quase-loira com jeito de bem-comportada. Mas não são esses os mistérios da alma, ou da música? Denise foi abafada pela Osesp na primeira canção; depois quem abafou foi ela.
Lindos momentos de sol, na "Pantomima" e nos "Sinos do Amanhecer". (Importante guardar isto na memória, antes das desolações da tragédia).
A única coisa errada com um concerto desses é que dá vontade de ouvir mais uma vez. Oxalá vingue a proposta de transmitir a temporada da Osesp pela televisão. Seria bom para a orquestra, para a televisão e para todos nós.


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