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MÚSICA ERUDITA/CRÍTICA
Ópera composta em 1926 por Igor Stravinsky terá nova versão em junho na Sala São Paulo
A cigana de Andaluzia e o rei cego de Tebas
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Ao investigar uma morte, o
detetive descobre que ele
mesmo é o assassino e que o morto era seu pai. Como se não bastasse, sua atual mulher é a viúva,
sua mãe. Grande idéia para um
romance policial: pena que já tenha sido antecipada por Sófocles.
Recriada, depois, por Freud, virou
parte da mitologia e se trivializou.
Tanto maior, então, o impacto de
escutar o "Édipo-Rei" de Stravinsky (1882-1971), onde os sentidos da tragédia se reanimam noutro tom, como a Osesp fez ouvir
na Sala São Paulo, sábado, sob a
regência de Roberto Minczuk.
A ópera-oratório foi composta
em 1926, para comemorar os 20
anos de atividade dos Balés Russos de Diaghilev, em Paris. (Foi
Diaghilev quem encomendou as
partituras de "Petrouchka" e "A
Sagração da Primavera", entre
outras). O empresário não se impressionou muito com "Édipo",
para ele "macabro demais". Reconhecida como obra-prima do período neoclássico de Stravinsky,
até hoje não chega a ser tão conhecida como devia.
Glória à cidade de São Paulo,
onde se vai escutar duas versões
neste ano (a segunda em junho,
com a Orquestra Experimental de
Repertório).
O libreto do poeta Jean Cocteau
foi traduzido para o latim a pedido de Stravinsky. Cabe a um narrador explicar a ação na língua da
platéia; papel difícil, fadado a maneirismos. O mínimo que se pode
dizer de Walmor Chagas é que foi
um narrador impecável: sóbrio,
sem formalismo, projeção claríssima da voz. A cabeleira branca
contrastava com a roupa escura e
o lenço preto no bolso parecia tão
apropriado quanto a postura levemente curva desse Sófocles-Cocteau, aparecendo ora de um
lado, ora de outro, em contraponto com a humanidade fixa do coro
masculino.
Alguém saberá dizer o máximo
da mezzo-soprano Renate Springler, encarnando Jocasta. Matar o
pai talvez seja um preço alto; mas
quem não queria casar com uma
mãe dessas? Elegante e contida no
cinza do vestido, exibia uma mecha susansontaguiana na testa
com a mesma bravura da fenda
lateral na perna e dos intervalos
expressivos de sua ária.
O corpulento Édipo de Michael
König formava com ela um par
visualmente insólito, mas musicalmente certeiro. Era um rei ao
mesmo tempo cheio de si e aberto
às dúvidas. Cantou o "c" latino
como "q" (não "tch"); detalhe que
reflete o vigor ascético da montagem. Cena final: Édipo mudo e
combalido, apoiado no bom pastor de Marcos Thadeu, no alto da
escada do coro, exposto ao mundo na luz vermelha dos olhos encharcados de sangue.
Com tanto assunto, a gente acaba deixando de comentar o
"Amor Bruxo" de Manuel de Falla
(1876-1946), que a orquestra tocou na primeira parte, com a solista Denise de Freitas. Estranho
ver "Joãozinho" (da ópera "João e
Maria") de volta à cena tão rápido, como cigana fatal. Estranho
também escutar esse vozeirão
grave e mediterrâneo saindo da
garganta de uma quase-loira com
jeito de bem-comportada. Mas
não são esses os mistérios da alma, ou da música? Denise foi abafada pela Osesp na primeira canção; depois quem abafou foi ela.
Lindos momentos de sol, na
"Pantomima" e nos "Sinos do
Amanhecer". (Importante guardar isto na memória, antes das desolações da tragédia).
A única coisa errada com um
concerto desses é que dá vontade
de ouvir mais uma vez. Oxalá vingue a proposta de transmitir a
temporada da Osesp pela televisão. Seria bom para a orquestra,
para a televisão e para todos nós.
Avaliação: ![](http://www.uol.com.br/fsp/images/ep.gif)
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