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São Paulo, quarta-feira, 09 de abril de 2003

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"O DIA QUE NÃO VOU ESQUECER"

Crianças são norte de cineasta contra as perversões da tradição

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Em seu documentário anterior, "Refúgio", realizado em parceria com a iraniana Ziba Mir-Hosseini, a documentarista inglesa Kim Longinotto, em consonância com o método consagrado pelos clássicos do cinema-direto de Frederick Wiseman, detinha-se no dia-a-dia de uma instituição destinada a abrigar, em Teerã, meninas foragidas de casa.
O método e a companhia de Mir-Hossein permitiam à cineasta inglesa posicionar-se no centro do drama da condição feminina na (ainda patriarcal) sociedade iraniana. Em "O Dia que Não Vou Esquecer", rodado em Nairóbi, no Quênia, Longinotto volta a se debruçar numa dita "questão feminina": a tradição somali de circuncisão clitoriana.
Desta vez, no entanto, deixando o "método Wiseman" de lado e sem a parceria de nenhuma documentarista local, Longinotto contenta-se em enxergar de fora os dados da questão, como quem tenta entender os valores de uma cultura que não é a sua.
Enquanto se detém nos adultos, o olhar extrínseco de Longinotto se revela meio perdido entre os sedutores apelos dos que defendem a ancestral tradição somali e as tímidas ponderações dos que a condenam. O despreparo da abordagem de Longinotto parece conduzi-la para uma armadilha. Mas se, de fato, caiu numa armadilha, não há dúvida de que soube tirar disso o maior proveito.
Voltando a apostar, como em "Refúgio", tão somente no poder de revelação de sua câmera, a documentarista encontra, na imagem de crianças sendo submetidas ao ritual de circuncisão, a solução do intricado problema em que se meteu. Ao testemunharmos a concretude da dor, a realidade da violência e do trauma infligidos às garotas pelos próprios pais, dissipa-se qualquer dúvida sobre a relevância mesma da proposição de Longinotto.
Pouco a pouco, o ponto de vista das crianças se impõe, como não podia deixar de ser. Uma delas, de uns oito anos, declama em inglês, diante de mãe, de quem ainda guarda mágoa, o poema que dá título ao filme, relato do dia em que foi submetida ao traumático ritual. As crianças livram Longinotto de qualquer engano e esta se vê pronta, mais uma vez, a assumir-lhes a causa contra as perversões da tradição.


O Dia que Não Vou Esquecer
The Day I Will Never Forget
   
Produção: Inglaterra, 2002
Direção: Kim Longinotto
Quando: hoje, às 19h, no Cinesesc (r. Augusta, 2.075, tel. 3082-0213)



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