|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"O DIA QUE NÃO VOU ESQUECER"
Crianças são norte de cineasta contra as perversões da tradição
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
Em seu documentário anterior, "Refúgio", realizado em
parceria com a iraniana Ziba Mir-Hosseini, a documentarista inglesa Kim Longinotto, em consonância com o método consagrado
pelos clássicos do cinema-direto
de Frederick Wiseman, detinha-se no dia-a-dia de uma instituição
destinada a abrigar, em Teerã,
meninas foragidas de casa.
O método e a companhia de
Mir-Hossein permitiam à cineasta inglesa posicionar-se no centro
do drama da condição feminina
na (ainda patriarcal) sociedade
iraniana. Em "O Dia que Não Vou
Esquecer", rodado em Nairóbi,
no Quênia, Longinotto volta a se
debruçar numa dita "questão feminina": a tradição somali de circuncisão clitoriana.
Desta vez, no entanto, deixando
o "método Wiseman" de lado e
sem a parceria de nenhuma documentarista local, Longinotto contenta-se em enxergar de fora os
dados da questão, como quem
tenta entender os valores de uma
cultura que não é a sua.
Enquanto se detém nos adultos,
o olhar extrínseco de Longinotto
se revela meio perdido entre os sedutores apelos dos que defendem
a ancestral tradição somali e as tímidas ponderações dos que a
condenam. O despreparo da
abordagem de Longinotto parece
conduzi-la para uma armadilha.
Mas se, de fato, caiu numa armadilha, não há dúvida de que soube
tirar disso o maior proveito.
Voltando a apostar, como em
"Refúgio", tão somente no poder
de revelação de sua câmera, a documentarista encontra, na imagem de crianças sendo submetidas ao ritual de circuncisão, a solução do intricado problema em
que se meteu. Ao testemunharmos a concretude da dor, a realidade da violência e do trauma infligidos às garotas pelos próprios
pais, dissipa-se qualquer dúvida
sobre a relevância mesma da proposição de Longinotto.
Pouco a pouco, o ponto de vista
das crianças se impõe, como não
podia deixar de ser. Uma delas, de
uns oito anos, declama em inglês,
diante de mãe, de quem ainda
guarda mágoa, o poema que dá título ao filme, relato do dia em que
foi submetida ao traumático ritual. As crianças livram Longinotto de qualquer engano e esta se vê
pronta, mais uma vez, a assumir-lhes a causa contra as perversões
da tradição.
O Dia que Não Vou Esquecer
The Day I Will Never Forget
Produção: Inglaterra, 2002
Direção: Kim Longinotto
Quando: hoje, às 19h, no Cinesesc (r.
Augusta, 2.075, tel. 3082-0213)
Texto Anterior: Festival É Tudo Verdade: Populares brilham em tela de festival Próximo Texto: "Fidel - A História não Contada": Cineasta entroniza líder cubano como mito Índice
|