UOL


São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2003

Texto Anterior | Índice

DANÇA

Vera Sala transita pelos limites da forma humana e se alia à vertigem para confrontar o espectador em solo no CCBB

Espetáculo reinventa a ordenação do corpo

INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA
FELIPE CHAIMOVICH
CRÍTICO DA FOLHA

Até que ponto um corpo pode se desestruturar? Pode perder o próprio centro? Num andaime com paredes de vidro na frente e abertura nas laterais, posto contra uma grande foto (de Nadezhda Mendes da Rocha) ao fundo -imagem de células ou pequenos organismos proliferantes-, Vera Sala dança o solo "Corpo Instalação". Integrando o evento "Ordenação e Vertigem", no CCBB, ela fica em cartaz até o final de setembro.
"Cada louco é guiado por um cadáver", dizia o esquizofrênico artista plástico Arthur Bispo do Rosário (1911-1989), cuja obra serve de tema para o evento no CCBB. Nesse espírito, as articulações ósseas de Sala ganham novas maneiras de se relacionar.
Por exemplo: a mão não pega. É anulada, e em seu lugar o pulso quebrado serve de apoio e dá nova forma ao corpo, que, em vão, tenta se manter em pé.
Nos olhos vitrificados de Vera Sala percebe-se um mundo a ponto de transbordar, mas controlado pelos limites corporais e por um aquário gigantesco.
A ação acontece em três níveis cenográficos. Começa com um deslizamento entre o chão e o piso superior: Sala arrasta-se entre tules, arames e restos de tecidos que se fazem de saia, observada pelo espectador de cima para baixo. No meio, anda sobre passarela estreita, em que os gestos da artista dependem da estrutura construída para apoio ou limite. Acaba no terceiro andar, com ela pesando contra o teto transparente, vista de baixo pelo público, que caminha pelo corredor mediano.
Em cada altura, a mesma imagem: um corpo colado ao vidro. Em cada região, um novo repertório fechado de figuras e gesto.
A performance tem um fluxo ascendente, seja nos planos, seja no movimento: parte da imobilidade e volta a ela. Assim como também parece transitar entre o orgânico e o inorgânico. Movimentos angulosos, disformes, convulsivos ganham amplitude no pulsar da respiração.
Os planos do cenário, de Pedro Mendes da Rocha, constituem uma primeira relação do inerte com a organicidade. São ainda mecânicos, claro, canos articulados por dobradiças. Se permitem uma relação mais viva com o observador, é porque oferecem possibilidades de ida e volta caminhando através do trabalho.
A estrutura artificial torna-se complemento do corpo. Ao se juntarem, as linhas produzem um plano; este, ao se torcer, produz um volume, que, ao bater contra as lâminas de vidro, cria as condições para o desdobramento. O corpo se deixa entrever nas suas opacidades -o corpo em convulsão, que não se sustenta e por vezes não se reconhece.
O som que acompanha a performance talvez não seja mais que uma sequência de "urros e guinchos", como disse um espectador; mas sugere bem mais do que isso: é como a nova língua de um organismo que precisa inventar seus próprios termos no estranho meio em que está. Invenção e recuo, avanço e descanso: uma espécie de morte acompanha, a cada passo, a precariedade da vida.
Depois, pelas frestas do nosso corpo, confrontado ao dela, sente-se a instabilidade de um organismo apoiado na solidez ao redor. A "ordenação" existe, mas é precária. Sala dança as vertigens.


Vera Sala
     Quando: qui., às 12h30; sáb., às 14h (até 27/9); e dia 7/9, às 17h Onde: Centro Cultural Banco do Brasil (r. Álvares Penteado, 112, região central, tel. 3113-3651) Quanto: entrada franca



Texto Anterior: Obsessão mobiliza personagens
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.