São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2007

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Nacionalista, músico se caracteriza por lirismo austero

Em contraste com a opulência de Villa-Lobos, compositor incorporou, com contenção, ritmos populares e canto de trovadores nordestinos à música clássica

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Ao lado de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Camargo Guarnieri é um dos principais nomes da música clássica brasileira do século 20. Mas, enquanto o gênio de Villa-Lobos é efusivo, amazônico, rapsódico e torrencial, a arte de Camargo Guarnieri se caracteriza pela austeridade, pela elegância e pela contenção.
Guarnieri está para Villa-Lobos assim como um romance realista nordestino da década de 30 está para o "Macunaíma" de Mário de Andrade. Do mesmo modo que Mário de Andrade "reescreveu" várias lendas indígenas em seu livro, Villa-Lobos utilizava muitas vezes temas folclóricos nas composições de sua autoria.
Isso é quase inexistente na obra de Camargo Guarnieri: intransigente nacionalista, ele preferia utilizar a linguagem, a "gramática" da música brasileira de modo mais interiorizado, empregando ritmos populares, modos de cantadores nordestinos e frases de estilo seresteiro para inventar seus próprios motivos e temas, que trazem uma forte marca pessoal.
É música mais do interior, da roça, paulista ou nordestina, que do litoral e da floresta. Daí, talvez, seu lirismo austero e comedido. Mesmo nos movimentos mais expansivos, o estilo é seco e anguloso, muitas vezes intelectualizado.
A orquestração em raros momentos atinge a opulência e o colorido de Villa-Lobos; mesmo em suas obras sinfônicas, Guarnieri é bastante camerístico, sendo inigualável seu domínio do contraponto.
Numa das obras do concerto de amanhã, o "Choro para Piano e Orquestra", essa característica é notável no segundo movimento, "Nostálgico": várias melodias se superpõem e se combinam na orquestra, enquanto o piano desenvolve, aos poucos, uma modinha nada simples de ouvir.
A "Suíte Vila Rica", série de dez peças curtas que também integra o programa do recital no auditório Ibirapuera, é bem mais acessível, tendo entre seus movimentos um "andantino" de tema nordestino, uma gostosa valsa brasileira e um baião.
Nos anos 50, enquanto Camargo Guarnieri mantinha as convicções nacionalistas, o dodecafonismo começava a ganhar adeptos entre os compositores da nova geração, o que o motivou a entrar em áspera polêmica com o compositor Hans-Joachim Koellreuter (1915-2005).
O modernismo de Guarnieri, tão típico de um momento de confiança no desenvolvimento brasileiro (eram os tempos de Juscelino e de Brasília) tornava-se, paradoxalmente, coisa do passado, diante do vanguardismo da pintura abstrata e da poesia concreta.
Por ironia, os ensinamentos de Koellreuter foram aproveitados por vários músicos da MPB, como Tom Jobim e Tom Zé, enquanto a obra de Guarnieri, de caráter bem mais "brasileiro", exerceu influência apenas sobre outros compositores eruditos, como Marlos Nobre, Eunice Catunda ou Nilson Lombardi.
Mas o acabamento técnico, a extensa gama de emoções, a beleza arquitetônica de sua música falam por si mesmos: se Villa-Lobos foi o grande gênio de nossa música, Guarnieri foi seu maior clássico.


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