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CINEMA "MIFUNE"
Realidade do Dogma se arruma pelo "acaso"
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Ao contrário dos filmes precedentes do manifesto Dogma 95
("Festa de Família" e "Os Idiotas"), "Mifune" (1999, Urso de
Prata no último Festival de Berlim), de Soren Kragh Jacobsen,
52, é uma história de amor.
Vem daí provavelmente a impressão de que é um filme mais
convencional do que os seus
predecessores comprometidos
com as mesmas limitações estéticas propostas pelo manifesto
liderado por Lars von Trier: câmera na mão, som direto, filmagem em locações etc.
Na verdade, o que começa a ficar claro com "Mifune" é que o
principal elemento dessa estética, o que mais aproxima os três
primeiros filmes do Dogma 95,
o que lhes dá a aura de um "novo realismo" e explica seu sucesso, é menos a "sujeira" da imagem do que um jogo narrativo
comum aos três.
Em todos eles, a narrativa é
construída como se a própria
realidade representada na tela
fosse se arrumando ao acaso,
naturalmente, no confronto casual dos personagens, o que garante seu aspecto lúdico.
Se, por um lado, esses filmes
parecem tratar de questões duras e provocadoras ("Mifune"
menos que os anteriores), por
outro distraem o espectador ao
passar a impressão de que se desenvolvem a partir do acaso e
que, pelo acaso, vão se ajustando, como a realidade.
É uma ilusão de realidade provocada a partir de situações absolutamente pensadas e construídas, que de acaso não têm
nada. Todo o jogo consiste em
fazer o espectador acompanhar
essas histórias como se elas estivessem sendo encenadas diante
dele e em tempo real, ou como
se nem mesmo estivessem sendo encenadas, como se fossem a
própria vida, só que com lógica
narrativa (que a vida obviamente não tem). E os efeitos formais
(câmera na mão etc.), em vez de
criarem um distanciamento, curiosamente reforçam esse jogo.
Em "Mifune", um sujeito que
acaba de se casar com a filha do
patrão que o empregou ao chegar a Copenhague anos antes,
quando dizia não ter ninguém
no mundo, vê seus esforços para
mudar de vida e esquecer o passado desmoronarem ao receber,
na noite de núpcias, um telefonema anunciando a morte do
pai, um fazendeiro pobre.
De repente, o mundo e o passado que ele tentou abandonar e
esconder reemergem. Ele tem
de deixar a mulher na lua-de-mel para enterrar o pai e decidir
o que fazer com o irmão mais
velho, um retardado obcecado
por discos voadores que continua sozinho na casa infecta e
quase em ruínas.
Seu passado o horroriza e envergonha ao ponto de não poder deixar a mulher acompanhá-lo. Decidido a retomar o
mais rápido sua vida de executivo recém-casado, tem a idéia de
contratar uma empregada, pelo
jornal, para cuidar da casa e do
irmão. Quem aparece, porém, é
uma prostituta de Copenhague,
tentando escapar ao assédio de
um psicopata que lhe telefona
todas as noites.
É como se tudo se encaixasse
por conta própria, como nas velhas comédias românticas de
Hollywood, só que sob a ilusão
de que isso acontece a despeito
do roteiro, pelos agenciamentos
do acaso. Em poucos dias, o jovem executivo percebe que perdeu o que havia conquistado, ou
melhor, que recuperou aquilo
de que tinha tentado se livrar.
"Mifune" (referência ao ator
japonês Toshiro Mifune, que o
protagonista imita aos berros,
como samurai, para distrair o
irmão retardado) é, ainda, um
filme que, senão feminista, ao
menos faz um grande elogio das
mulheres. Porque, aqui, só elas
não são idiotas.
Avaliação:
Filme: Mifune
Produção: Dinamarca, 1999
Direção: Soren Kragh-Jacobsen
Com: Anders W. Berthelsen, Iben
Hjejle
Quando: hoje, às 20h, no Espaço
Unibanco
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