São Paulo, Sábado, 10 de Julho de 1999
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CINEMA "MIFUNE"
Realidade do Dogma se arruma pelo "acaso"

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Ao contrário dos filmes precedentes do manifesto Dogma 95 ("Festa de Família" e "Os Idiotas"), "Mifune" (1999, Urso de Prata no último Festival de Berlim), de Soren Kragh Jacobsen, 52, é uma história de amor.
Vem daí provavelmente a impressão de que é um filme mais convencional do que os seus predecessores comprometidos com as mesmas limitações estéticas propostas pelo manifesto liderado por Lars von Trier: câmera na mão, som direto, filmagem em locações etc.
Na verdade, o que começa a ficar claro com "Mifune" é que o principal elemento dessa estética, o que mais aproxima os três primeiros filmes do Dogma 95, o que lhes dá a aura de um "novo realismo" e explica seu sucesso, é menos a "sujeira" da imagem do que um jogo narrativo comum aos três.
Em todos eles, a narrativa é construída como se a própria realidade representada na tela fosse se arrumando ao acaso, naturalmente, no confronto casual dos personagens, o que garante seu aspecto lúdico.
Se, por um lado, esses filmes parecem tratar de questões duras e provocadoras ("Mifune" menos que os anteriores), por outro distraem o espectador ao passar a impressão de que se desenvolvem a partir do acaso e que, pelo acaso, vão se ajustando, como a realidade.
É uma ilusão de realidade provocada a partir de situações absolutamente pensadas e construídas, que de acaso não têm nada. Todo o jogo consiste em fazer o espectador acompanhar essas histórias como se elas estivessem sendo encenadas diante dele e em tempo real, ou como se nem mesmo estivessem sendo encenadas, como se fossem a própria vida, só que com lógica narrativa (que a vida obviamente não tem). E os efeitos formais (câmera na mão etc.), em vez de criarem um distanciamento, curiosamente reforçam esse jogo.
Em "Mifune", um sujeito que acaba de se casar com a filha do patrão que o empregou ao chegar a Copenhague anos antes, quando dizia não ter ninguém no mundo, vê seus esforços para mudar de vida e esquecer o passado desmoronarem ao receber, na noite de núpcias, um telefonema anunciando a morte do pai, um fazendeiro pobre.
De repente, o mundo e o passado que ele tentou abandonar e esconder reemergem. Ele tem de deixar a mulher na lua-de-mel para enterrar o pai e decidir o que fazer com o irmão mais velho, um retardado obcecado por discos voadores que continua sozinho na casa infecta e quase em ruínas.
Seu passado o horroriza e envergonha ao ponto de não poder deixar a mulher acompanhá-lo. Decidido a retomar o mais rápido sua vida de executivo recém-casado, tem a idéia de contratar uma empregada, pelo jornal, para cuidar da casa e do irmão. Quem aparece, porém, é uma prostituta de Copenhague, tentando escapar ao assédio de um psicopata que lhe telefona todas as noites.
É como se tudo se encaixasse por conta própria, como nas velhas comédias românticas de Hollywood, só que sob a ilusão de que isso acontece a despeito do roteiro, pelos agenciamentos do acaso. Em poucos dias, o jovem executivo percebe que perdeu o que havia conquistado, ou melhor, que recuperou aquilo de que tinha tentado se livrar.
"Mifune" (referência ao ator japonês Toshiro Mifune, que o protagonista imita aos berros, como samurai, para distrair o irmão retardado) é, ainda, um filme que, senão feminista, ao menos faz um grande elogio das mulheres. Porque, aqui, só elas não são idiotas.


Avaliação:    


Filme: Mifune
Produção: Dinamarca, 1999
Direção: Soren Kragh-Jacobsen
Com: Anders W. Berthelsen, Iben Hjejle Quando: hoje, às 20h, no Espaço Unibanco


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