São Paulo, domingo, 12 de abril de 2009

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Crítica/"Só"

João Miguel volta à cena e se confirma como um ator raro

Espetáculo de autoria da italiana Letizia Russo expõe fluxo de consciência de um personagem anônimo

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

Alguns romances e espetáculos contemporâneos compartilham uma recusa ao diálogo e uma vocação monológica. A encenação de "Só", primeiro monólogo da jovem e promissora dramaturga italiana Letizia Russo, confirma essa tendência, ao mesmo tempo em que se caracteriza por uma teatralidade autônoma da dimensão literária.
O texto de Russo apresenta-se pelo fluxo de consciência de um personagem anônimo e não localizado. Não é preciso saber quem ele é nem onde está, porque suas palavras, encadeadas em ritmo calmo e sincopado, não são palavras ao vento. Elas são claras palavras de um homem que as fala sem peias, e com elas conta sua história a seu modo.
Não é um modo direto, tampouco prolixo. Peca mais pela economia do que pelo excesso e serve-se da repetição para enfatizar certas passagens e demarcar momentos cruciais. Ao final, estará claro que ele é um homem que retorna ao lugar onde, quando tinha 15 anos, amou pela primeira vez.
Mas esse relato, que no final se fecha, não é tão importante quanto o caminho que os artistas envolvidos na encenação percorrem. Em "Só", vale menos o "que" e mais o "como". A começar pela cenografia, que combina a densidade de um vasto chão de mármore branco e a singularidade de uma única cadeira. O espaço está vazio, mas preenchido em cada centímetro por significações relevantes.
A claridade e lisura do extenso piso não escondem as áreas rebaixadas, em que a materialidade cênica comparecerá com seu quinhão na narrativa. Por exemplo, quando o personagem revela o momento crítico em que sua relação proibida é flagrada e se derrete como neve, o piso literalmente faz água e é sutilmente inundado diante do público.
A participação mais contundente das matérias cênicas é a da luz, quase protagonista neste espetáculo mágico. A começar pelo uso das lâmpadas externas dos postes da avenida Paulista, que banham o espaço nos momentos em que a cena fica totalmente escura, passando pelas diversas fontes que esquadrinham todo o mapa da representação, pode-se dizer que a luz é também narradora. A imaginação do espectador acompanha o relato oral da volta ao lugar de origem, mas, com a luz, vê a estrada, o banheiro, o banho no sol da juventude, o bar onde se reencontra o velho amigo, a recordação do trauma e o estilhaçar do sonho, que finalmente libertará a memória represada.
Para compor esse mosaico de luzes e espaços, a inspirada direção de Alvise Camozzi contou, principalmente, com a cenografia de Laura Vinci, em si um objeto de arte, e com a luz de Alessandra Domingues, verdadeira dramaturgia em contraponto ao texto de Russo. Mas nenhum desses efeitos faria qualquer sentido se a cena não estivesse animada pela presença de um ator raro. João Miguel, de volta à cena, traz uma tranquilidade e uma paciência no seu atuar que calham perfeitamente com texto e encenação, ou melhor, que os conformam e justificam. É o seu talento que amarra tudo e nos certifica de que o assistido era mesmo teatro, narrativa do corpo e da matéria.




Quando: sex. a dom., às 20h30; até 17/5 (ingressos esgotados até 19/4)
Onde: Sesc Av. Paulista (av. Paulista, 119, 5º andar, tel. 3179-3700)
Quanto: de R$ 5 a R$ 20
Classificação: não indicado a menores de 16 anos
Avaliação: ótimo



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