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Crítica/"Só"
João Miguel volta à cena e se confirma como um ator raro
Espetáculo de autoria da italiana Letizia Russo expõe
fluxo de consciência de um personagem anônimo
LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA
Alguns romances e espetáculos contemporâneos compartilham
uma recusa ao diálogo e uma
vocação monológica.
A encenação de "Só", primeiro monólogo da jovem e promissora dramaturga italiana
Letizia Russo, confirma essa
tendência, ao mesmo tempo
em que se caracteriza por uma
teatralidade autônoma da dimensão literária.
O texto de Russo apresenta-se pelo fluxo de consciência de
um personagem anônimo e não
localizado. Não é preciso saber
quem ele é nem onde está, porque suas palavras, encadeadas
em ritmo calmo e sincopado,
não são palavras ao vento. Elas
são claras palavras de um homem que as fala sem peias, e
com elas conta sua história a
seu modo.
Não é um modo direto, tampouco prolixo. Peca mais pela
economia do que pelo excesso e
serve-se da repetição para enfatizar certas passagens e demarcar momentos cruciais. Ao
final, estará claro que ele é um
homem que retorna ao lugar
onde, quando tinha 15 anos,
amou pela primeira vez.
Mas esse relato, que no final
se fecha, não é tão importante
quanto o caminho que os artistas envolvidos na encenação
percorrem. Em "Só", vale menos o "que" e mais o "como".
A começar pela cenografia,
que combina a densidade de
um vasto chão de mármore
branco e a singularidade de
uma única cadeira. O espaço está vazio, mas preenchido em
cada centímetro por significações relevantes.
A claridade e lisura do extenso piso não escondem as áreas
rebaixadas, em que a materialidade cênica comparecerá com
seu quinhão na narrativa. Por
exemplo, quando o personagem revela o momento crítico
em que sua relação proibida é
flagrada e se derrete como neve, o piso literalmente faz água
e é sutilmente inundado diante
do público.
A participação mais contundente das matérias cênicas é a
da luz, quase protagonista neste espetáculo mágico. A começar pelo uso das lâmpadas externas dos postes da avenida
Paulista, que banham o espaço
nos momentos em que a cena
fica totalmente escura, passando pelas diversas fontes que esquadrinham todo o mapa da representação, pode-se dizer que
a luz é também narradora.
A imaginação do espectador
acompanha o relato oral da volta ao lugar de origem, mas, com
a luz, vê a estrada, o banheiro, o
banho no sol da juventude, o
bar onde se reencontra o velho
amigo, a recordação do trauma
e o estilhaçar do sonho, que finalmente libertará a memória
represada.
Para compor esse mosaico de
luzes e espaços, a inspirada direção de Alvise Camozzi contou, principalmente, com a cenografia de Laura Vinci, em si
um objeto de arte, e com a luz
de Alessandra Domingues, verdadeira dramaturgia em contraponto ao texto de Russo.
Mas nenhum desses efeitos
faria qualquer sentido se a cena
não estivesse animada pela
presença de um ator raro. João
Miguel, de volta à cena, traz
uma tranquilidade e uma paciência no seu atuar que calham perfeitamente com texto
e encenação, ou melhor, que os
conformam e justificam.
É o seu talento que amarra
tudo e nos certifica de que o assistido era mesmo teatro, narrativa do corpo e da matéria.
SÓ
Quando: sex. a dom., às 20h30; até
17/5 (ingressos esgotados até 19/4)
Onde: Sesc Av. Paulista (av. Paulista,
119, 5º andar, tel. 3179-3700)
Quanto: de R$ 5 a R$ 20
Classificação: não indicado a menores
de 16 anos
Avaliação: ótimo
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