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TEATRO
Mário Bortolotto visita o tema pela primeira vez em "O que Restou do Sagrado", com o Cemitério de Automóveis
Ex-seminarista, autor vai ao sagrado sem dó
DA REPORTAGEM LOCAL
Quem acha que Mário Bortolotto pegou pesado em "Hotel
Lancaster" (2000), sob direção de
Marcos Loureiro, descida ao inferno das drogas e afins, talvez note que o buraco é ainda mais embaixo em "O que Restou do Sagrado", seu texto mais recente.
A primeira surpresa é que esse
dramaturgo e ator paranaense, à
frente do grupo Cemitério de Automóveis, já freqüentou seminário por cinco anos.
Demonstra intimidade para
com a expiação de culpas que
promove em sua primeira visita
ao tema do sagrado entre as cerca
de 40 peças que escreveu. "Agora
vou ser excomungado de vez", diz
Bortolotto, 42.
Ele escolheu "a dedo" a data da
estréia, ontem à noite, no Espaço
dos Satyros: dia de Nossa Senhora
Aparecida e das Crianças. Há passagens de depravações sem fim
nessa história curta de "sete cascavéis das piores" reunidas numa
igreja noite adentro.
Dramaturgo conhecido pelas
histórias com personagens errantes, bêbados e deslocados, geralmente em ambiente urbano, Bortolotto confessa que desejava tratar do sagrado antes, mas só agora
encara suas inquietações sobre religião no palco e na direção.
Personagens confessam pedofilia, chacinas e outros vitupérios
em tintas realistas. Mas não conseguem se arrepender sinceramente, ainda que disso dependa o
destino de um mundo falido.
A começar pelo Padre que os
convoca (interpretado por Nelson Peres), ele mesmo um personagem em crise de fé. "A gente se
agarra a qualquer coisa em que a
gente possa acreditar. Pode ser
um deus ou um cartão de loteria
esportiva", despacha.
Agora vem Lilís, a atriz pornô,
na pele de Lavínia Pannunzio:
"Pensando bem, eu nunca consegui entender um sujeito que coloca o próprio filho numa cruz e o
faz literalmente comer o pão que
o Diabo amassou. No mínimo, ele
não merecia ganhar presente no
Dia dos Pais".
E as máscaras vão caindo: a escritora Cibele (papel de Fernanda
d'Umbra), a secretária (Mariana
Leme), o pedófilo (Wilton Andrade), o empresário mauricinho
Roby (Gabriel Pinheiro) e o matador de travestis Val (Bortolotto).
"Deus é a desculpa do mundo",
afirma Val.
"Sou católico. Quero acreditar
que Deus me deu livre-arbítrio,
que sou senhor do meu destino,
mas às vezes me pego pensando
que ele está de brincadeira com a
gente", diz Bortolotto.
Em meio ao humor corrosivo,
há algum fiapo de esperança, nem
que seja na epígrafe de santo
Agostinho: "Deus permitiu o mal
para dele extrair o bem".
Anteontem, após o almoço, a
caminho da pelada de toda segunda-feira à tarde com os amigos,
Bortolotto lançava ao menos uma
pista para tanta indagação: "O futebol é a única coisa que restou do
sagrado", chuta o também responsável pela trilha ("spiritual,
gospel e uns sons demoníacos").
A nova montagem marca o retorno do grupo de 22 anos à fase
"nômade", depois de encerrar
ocupação no teatro Alfredo Mesquita, na zona norte de São Paulo.
Contemplado pelo Programa
Municipal de Fomento ao Teatro,
o Cemitério sente-se em casa ali
na praça Roosevelt.
(VALMIR SANTOS)
O QUE RESTOU DO SAGRADO. Texto e
direção: Mário Bortolotto. Com: o grupo
Cemitério de Automóveis. Quando: em
cartaz ter. e qua., às 21h30. Onde: Espaço
dos Satyros (pça. Roosevelt, 214, centro,
tel. 3258-6345). Quanto: R$ 10. Até 15 de
dezembro.
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