|
Texto Anterior | Índice
"AS CINZAS DE DEUS"
Quando o movimento quer ser sentimento
CRÍTICA DA FOLHA
"No mesmo corpo, quente
lutava contra o frio/ Molhado contra seco, duro contra
macio/ O que era pesado coexistia
com o que era leve." Para continuar nos binarismos: sonho e realidade compõem a narrativa do
filme de dança "As Cinzas de
Deus", coreografado por Fernanda Lippi e dirigido por André Semenza.
Inspirado na "Metamorfose" de
Ovídio (43 a.C.-18d.C.), o filme se
passa numa estação de trem antiga, em Ribeirão Vermelho (MG).
A metamorfose aqui vira uma lei
dos corpos: a protagonista Heloisa Domingues escava a memória
e se reencontra com os outros
(Jacqueline Gimenez, Tuca Pinheiro, Ricardo de Paula e Marise
Dinis). "Janelas" da lembrança se
alegorizam em janelas e portas
propriamente ditas. Paredes velhas e degradadas se contrapõem
à juventude dos corpos.
Numa narrativa tão fragmentada como essa, o risco é sempre o
de perder a tensão. Isto é contrabalançado pela ressonância de
palavras não ditas: um poema
mudo, mas não meramente plástico, desenhando aos poucos sua
arquitetura invisível.
De Ovídio vem o tema da morte
e do renascimento, encenado a
cada encontro. Os corpos se debatem: movimento quer ser sentimento. É do corpo que deveria
emergir o sentido da dança, continuamente em vias de escapar.
A questão que se coloca é se o
cruzamento entre dança e filme
pode aumentar a força de atuação; isto é, se a força dos bailarinos não será diminuída quando
não têm controle final. A dança
não perde parte de sua própria
teatralidade? Mas também não
ganha em qualidade abstrata?
Marcado pelo cuidado de edição, o filme faz de cada quadro
um exercício de beleza. O diretor
de fotografia Marcus Waterloo
traz à luz detalhes do corpo, seguindo a direção de Semenza, que
privilegia a câmera fechada. Só
num raro momento vê-se o cenário como um todo: imagens da estação enevoada na bruma.
Tudo somado resulta num filme
bonito e instigante. Falta talvez
descobrir seu potencial maior como arte da performance. Mas isso
já seria outra história, outro Ovídio. São as metamorfoses que virão.
(INÊS BOGÉA)
As Cinzas de Deus
Produção: Brasil, 2003
Direção: André Semenza
Onde: em cartaz no Cinesesc
Texto Anterior: Dança: Dissonâncias e consonâncias marcam o butô Índice
|