UOL


São Paulo, segunda-feira, 15 de setembro de 2003

Texto Anterior | Índice

"AS CINZAS DE DEUS"

Quando o movimento quer ser sentimento

CRÍTICA DA FOLHA

"No mesmo corpo, quente lutava contra o frio/ Molhado contra seco, duro contra macio/ O que era pesado coexistia com o que era leve." Para continuar nos binarismos: sonho e realidade compõem a narrativa do filme de dança "As Cinzas de Deus", coreografado por Fernanda Lippi e dirigido por André Semenza.
Inspirado na "Metamorfose" de Ovídio (43 a.C.-18d.C.), o filme se passa numa estação de trem antiga, em Ribeirão Vermelho (MG). A metamorfose aqui vira uma lei dos corpos: a protagonista Heloisa Domingues escava a memória e se reencontra com os outros (Jacqueline Gimenez, Tuca Pinheiro, Ricardo de Paula e Marise Dinis). "Janelas" da lembrança se alegorizam em janelas e portas propriamente ditas. Paredes velhas e degradadas se contrapõem à juventude dos corpos.
Numa narrativa tão fragmentada como essa, o risco é sempre o de perder a tensão. Isto é contrabalançado pela ressonância de palavras não ditas: um poema mudo, mas não meramente plástico, desenhando aos poucos sua arquitetura invisível.
De Ovídio vem o tema da morte e do renascimento, encenado a cada encontro. Os corpos se debatem: movimento quer ser sentimento. É do corpo que deveria emergir o sentido da dança, continuamente em vias de escapar.
A questão que se coloca é se o cruzamento entre dança e filme pode aumentar a força de atuação; isto é, se a força dos bailarinos não será diminuída quando não têm controle final. A dança não perde parte de sua própria teatralidade? Mas também não ganha em qualidade abstrata?
Marcado pelo cuidado de edição, o filme faz de cada quadro um exercício de beleza. O diretor de fotografia Marcus Waterloo traz à luz detalhes do corpo, seguindo a direção de Semenza, que privilegia a câmera fechada. Só num raro momento vê-se o cenário como um todo: imagens da estação enevoada na bruma.
Tudo somado resulta num filme bonito e instigante. Falta talvez descobrir seu potencial maior como arte da performance. Mas isso já seria outra história, outro Ovídio. São as metamorfoses que virão. (INÊS BOGÉA)


As Cinzas de Deus
   
Produção: Brasil, 2003
Direção: André Semenza
Onde: em cartaz no Cinesesc



Texto Anterior: Dança: Dissonâncias e consonâncias marcam o butô
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.