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São Paulo, quarta-feira, 15 de outubro de 2003

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"NA SOLIDÃO DOS CAMPOS DE ALGODÃO"

Através de metáforas, peça dirigida por Paulo José aborda utopia e desejo

Montagem empresta maturidade a Koltès

Guga Melgar/ Divulgação
Adriano Garib (à esq.) e Paulo Trajano em "Na Solidão dos Campos de Algodão"


SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

"Na Solidão dos Campos de Algodão" é uma encenação meticulosa para um texto difícil. Bernard-Marie Koltès (1948-1989), um dos dramaturgos franceses mais representados e traduzidos, começa assim no Brasil a completar a trajetória que o marcou na França: adotado primeiro pelo teatro experimental, sobretudo o de estudantes de teatro, ganha consagração se beneficiando com montagens cada vez mais despojadas por veteranos.
Pois o desafio do texto de Koltès está justamente na sua crueza. Quase sem intriga, suas peças começam em um impasse e acabam sem concluir nada, possibilitando apenas que na angústia do vácuo os personagens se enredem em longos monólogos, que honram a língua de Racine. Árias de ópera sem música, nas quais fulguram como meteoros comparações de grande lucidez poética, é constante o perigo para a encenação de se converter ora em uma sequência de efeitos cênicos, ora em um duelo verbal em forma de façanha técnica entre atores.
O grande trunfo é a mão de atores, desde a tradução (Jacqueline Laurence garante a fluidez) até a direção de Paulo José. As marcas não chamam atenção para si, permanecem orgânicas, quase realistas, enquanto garantem a variedade de tons e ritmos desse texto construído em tema e variações. A cenografia revela a eficácia do seu despojamento justamente nos raros momentos que extrapola o essencial, em um questionável efeito com fibras óticas.
Como "virtuosi" que devem dar a impressão de simplicidade para uma partitura difícil, os atores não perdem o fio da meada do fluxo verbal. Paulo Trajano parte de uma caracterização um pouco carregada do traficante, mas logo mostra uma fragilidade mais aprofundada, beneficiado pelo contraponto de Adriano Garib, próximo do depoimento pessoal, sem perder a objetividade.
A trama se limita ao encontro fortuito entre um traficante, que não revela o que vende, e um eventual cliente, que não assume o que quer. Entre a ameaça e a sedução, e respeitando as regras clássicas, o conflito imediatamente se configura como uma metáfora. Imerso no fluxo verbal, sem pistas na intriga que dêem margem a uma interpretação inequívoca, o espectador se prende a detalhes da encenação para compreender a metáfora. O sotaque carioca dos atores leva a uma possível leitura sócio-psicológica: o conflito de poder entre o traficante do morro e o emergente urbano aproximaria Koltès de Plínio Marcos. A peça, assim, falaria de utopia e desejo, questão central para a política brasileira atual.
Por outro lado, o fato de o público ficar em arquibancadas montadas no palco, começando a peça com o fechar do pano, permite uma leitura metalinguística: um artista na coxia negociando com o público qual a sua função. Cabe ao público, assim, vencendo a sensação de tédio que sempre ameaça a montagem, incentivado pela grande concentração dos atores, fazer a relação que permite à peça transcender o mero exercício técnico. Essa é a grandeza e o limite dessa encenação.
Na Solidão dos Campos de Algodão

    De: Bernard-Marie Koltès
Direção: Paulo José
Com: Adriano Garib e Paulo Trajano
Onde: Sesc Belenzinho (av. Álvaro Ramos, 915, tel. 6602-3700)
Quando: sáb. e dom., às 21h; até 30/11
Quanto: R$ 15

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