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CRÍTICA
Engajada, beleza é a protagonista do filme de Visconti
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Há duas semanas, enquanto
uma turba de profissionais e deslumbrados de moda se exasperava pelos engarrafamentos da cidade tentando chegar aos desfiles no Ibirapuera, o verdadeiro
show da beleza acontecia a alguns quilômetros dali, onde menos se esperava, no silêncio e
tranquilidade de uma única sala
de cinema.
Ninguém os tinha avisado que
estavam na direção errada. Se
queriam ver glamour de verdade, deveriam ter dado meia-volta
e ido assistir a "Rocco e Seus Irmãos" (1960), de Luchino Visconti, que voltou a ser exibido
com cópia restaurada. Se estavam atrás de um espetáculo estonteante de elegância, deviam
ter ficado com Annie Girardot e
Claudia Cardinale, em vez de Kate Moss.
De todas as imperfeições humanas (que, por relativismo e
autocomplacência, nos acostumamos a chamar de qualidades),
a beleza é a mais incontestável, a
mais absoluta, a mais impressionante, incompreensível, irredutível, por não ter explicação, porque não precisa se explicar. A beleza não tem razão. Quem quer
ser sensível, talentoso, inteligente
e culto, quando pode ser bonito?
"Rocco" é um filme sobre a beleza, feito por um dos cineastas
mais sensíveis, talentosos, inteligentes e cultos de toda a história
do cinema, e que por isso mesmo
(por lhe faltar a beleza que sabia
reconhecer à sua volta) tinha tanto mais autoridade para saber do
que estava falando.
Não há nada de fútil ou redutor
em dizer que "Rocco", que conta
a história de uma típica família
de camponeses do sul da Itália, a
mãe viúva e seus filhos, lutando
pela sobrevivência em Milão, é
um filme sobre a beleza.
Assim, o socialismo idealizado
do diretor, a glamourização das
classes operárias, ganha aspecto
quase religioso. Como se a mão
de Deus tivesse se manifestado
ali com gosto e esmero especiais,
contrastando com o desleixo a
que parece ter cedido ao conceber o resto do mundo e da vida,
cheia de misérias, injustiças, violências, desesperos e morte. Como se a beleza fosse a única reação possível a tudo isso.
A aparição de Claudia Cardinale pela primeira vez na tela como a noiva milanesa de um dos
irmãos de Rocco é, por exemplo,
um acontecimento digno de todas as trombetas dos céus. Para
não falar em Alain Delon, no auge da juventude, ou mesmo em
Annie Girardot, cuja carreira entrou em franca derrocada dali
para a frente.
Imaginário coletivo
A cena em que ela, interpretando uma puta com a elegância
de um anjo, perdida no amor, se
entrega ao ex-amante desvairado
de ciúme e à morte, de braços
abertos (algo de Cristo), deve fazer hoje parte do imaginário coletivo de toda uma geração.
"Rocco" é um filme em que o
desejo transborda por todos os
lados, dando aos personagens a
força que lhes permite prosseguir diante de tanta adversidade.
É um filme que, mais do que
idealizar o proletariado, faz o
elogio da beleza como redenção
diante de tanto sofrimento. Algo
que simplesmente não pode
ocorrer a quem se exaspera por
algumas horas no trânsito para
conseguir chegar a tempo a um
desfile de moda.
Avaliação:
Filme: Rocco e Seus Irmãos
Produção: Itália, 1960
Direção: Luchino Visconti
Com: Alain Delon, Renato Salvatori,
Annie Girardot e Claudia Cardinale
Onde: Vitrine (r. Augusta, 2.530, tel.
853-7684)
Quanto: R$ 8
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