São Paulo, Domingo, 18 de Julho de 1999
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CRÍTICA
Engajada, beleza é a protagonista do filme de Visconti

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Há duas semanas, enquanto uma turba de profissionais e deslumbrados de moda se exasperava pelos engarrafamentos da cidade tentando chegar aos desfiles no Ibirapuera, o verdadeiro show da beleza acontecia a alguns quilômetros dali, onde menos se esperava, no silêncio e tranquilidade de uma única sala de cinema.
Ninguém os tinha avisado que estavam na direção errada. Se queriam ver glamour de verdade, deveriam ter dado meia-volta e ido assistir a "Rocco e Seus Irmãos" (1960), de Luchino Visconti, que voltou a ser exibido com cópia restaurada. Se estavam atrás de um espetáculo estonteante de elegância, deviam ter ficado com Annie Girardot e Claudia Cardinale, em vez de Kate Moss.
De todas as imperfeições humanas (que, por relativismo e autocomplacência, nos acostumamos a chamar de qualidades), a beleza é a mais incontestável, a mais absoluta, a mais impressionante, incompreensível, irredutível, por não ter explicação, porque não precisa se explicar. A beleza não tem razão. Quem quer ser sensível, talentoso, inteligente e culto, quando pode ser bonito?
"Rocco" é um filme sobre a beleza, feito por um dos cineastas mais sensíveis, talentosos, inteligentes e cultos de toda a história do cinema, e que por isso mesmo (por lhe faltar a beleza que sabia reconhecer à sua volta) tinha tanto mais autoridade para saber do que estava falando.
Não há nada de fútil ou redutor em dizer que "Rocco", que conta a história de uma típica família de camponeses do sul da Itália, a mãe viúva e seus filhos, lutando pela sobrevivência em Milão, é um filme sobre a beleza.
Assim, o socialismo idealizado do diretor, a glamourização das classes operárias, ganha aspecto quase religioso. Como se a mão de Deus tivesse se manifestado ali com gosto e esmero especiais, contrastando com o desleixo a que parece ter cedido ao conceber o resto do mundo e da vida, cheia de misérias, injustiças, violências, desesperos e morte. Como se a beleza fosse a única reação possível a tudo isso.
A aparição de Claudia Cardinale pela primeira vez na tela como a noiva milanesa de um dos irmãos de Rocco é, por exemplo, um acontecimento digno de todas as trombetas dos céus. Para não falar em Alain Delon, no auge da juventude, ou mesmo em Annie Girardot, cuja carreira entrou em franca derrocada dali para a frente.

Imaginário coletivo
A cena em que ela, interpretando uma puta com a elegância de um anjo, perdida no amor, se entrega ao ex-amante desvairado de ciúme e à morte, de braços abertos (algo de Cristo), deve fazer hoje parte do imaginário coletivo de toda uma geração.
"Rocco" é um filme em que o desejo transborda por todos os lados, dando aos personagens a força que lhes permite prosseguir diante de tanta adversidade. É um filme que, mais do que idealizar o proletariado, faz o elogio da beleza como redenção diante de tanto sofrimento. Algo que simplesmente não pode ocorrer a quem se exaspera por algumas horas no trânsito para conseguir chegar a tempo a um desfile de moda.


Avaliação:     



Filme: Rocco e Seus Irmãos Produção: Itália, 1960 Direção: Luchino Visconti Com: Alain Delon, Renato Salvatori, Annie Girardot e Claudia Cardinale Onde: Vitrine (r. Augusta, 2.530, tel. 853-7684) Quanto: R$ 8


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