|
Texto Anterior | Índice
MÚSICA ERUDITA
Riscos, arrojos e felicidades
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
A grande peça, quem diria,
foi o Ginastera (1916-83). Arriscado, arrojado, com a coragem
de buscar suas verdades não só
em labirintos estranhos da forma,
mas em pátios obscuros da memória, para não falar nos pátios
escuros a que o compositor foi
virtualmente consignado pelo ditador Perón. Arriscado e arrojado
também o maestro Cláudio Cruz,
ao escolher este "Concerto para
Cordas" para abrir o concerto da
Orquestra de Câmara da Osesp,
anteontem na Sala São Paulo.
Ginastera está para a Argentina
como Villa-Lobos para nós; mas
teria maior afinidade com Camargo Guarnieri. De temperamento, senão propriamente de
estilo: neste "Concerto" de 1965,
por exemplo, o argentinismo não
guarda mais um traço de pitoresco. E não só pela linguagem harmônica (serialismo não rigoroso).
O incrível primeiro movimento
-um rodízio de cadências virtuosísticas dos chefes de naipe,
entremeadas de explosões e comentários da orquestra- já nos
põe, de chofre, cara a cara com a
experiência mais adulta e séria.
Faz pensar em Bartók e Schnittke,
entre outros compositores capazes de resistir, de dentro, aos horrores do século passado.
Que privilégio escutar essa música, tão bem tocada. Se aqui e ali
(não só nessa peça) as linhas em
uníssono pareciam riscadas com
ponta grossa, isso não diminuiu a
comoção. E que boa surpresa terá
sido, para muita gente, ver Cláudio Cruz, spalla da Osesp, regendo com tamanha fluência. Faz a
orquestra tocar de outro jeito,
mais próximo de um ideal do violinista: um tempo de fundo bem
largo, uma grande calma como
espaço da música, palco invisível
para todas as fantasias e agitações.
Mais fantasia do que agitação
no "Concerto nš 2" para trompa
de Mozart (1756-91), com o solista
Dante Yenque. Um trompista de
melancolias, mais que de fanfarras. Nem tudo em Mozart é de Saturno; mas quando aquelas modulações começam... Em suma: se
não foi perfeito, foi bonito.
Nem agitação nem exatamente
fantasia na "Serenata" de Dvorák
(1841-1904). É a felicidade, mesmo. Um tcheco explicou tudo em
música; e parece tão simples: uma
valsa da Boêmia, ou um tema todo feito de saltos de quinta, com a
mais antiga das sequências harmônicas por baixo. Lindas brumas da Orquestra de Câmara, na
coda do "Scherzo"; depois um
solzinho; depois a luz total da manhã. Deixa a gente no limite de dizer bobagem, porque a gratidão é
imensa, o coração bate solto e as
palavras viram um entrave. Dá
vontade de escutar tudo de novo.
Orquestra de Câmara da Osesp
Onde: Sala São Paulo (pça. Júlio Prestes,
s/nš, tel. 3337-5414)
Quando: hoje, às 16h30
Quanto: de R$ 16 a R$ 52
Texto Anterior: "Pessoas Invisíveis"/"Casca de Noz": Grupo se impõe entre sonhos e declamações Índice
|