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São Paulo, sábado, 19 de julho de 2003

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MÚSICA ERUDITA

Riscos, arrojos e felicidades

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

A grande peça, quem diria, foi o Ginastera (1916-83). Arriscado, arrojado, com a coragem de buscar suas verdades não só em labirintos estranhos da forma, mas em pátios obscuros da memória, para não falar nos pátios escuros a que o compositor foi virtualmente consignado pelo ditador Perón. Arriscado e arrojado também o maestro Cláudio Cruz, ao escolher este "Concerto para Cordas" para abrir o concerto da Orquestra de Câmara da Osesp, anteontem na Sala São Paulo.
Ginastera está para a Argentina como Villa-Lobos para nós; mas teria maior afinidade com Camargo Guarnieri. De temperamento, senão propriamente de estilo: neste "Concerto" de 1965, por exemplo, o argentinismo não guarda mais um traço de pitoresco. E não só pela linguagem harmônica (serialismo não rigoroso).
O incrível primeiro movimento -um rodízio de cadências virtuosísticas dos chefes de naipe, entremeadas de explosões e comentários da orquestra- já nos põe, de chofre, cara a cara com a experiência mais adulta e séria. Faz pensar em Bartók e Schnittke, entre outros compositores capazes de resistir, de dentro, aos horrores do século passado.
Que privilégio escutar essa música, tão bem tocada. Se aqui e ali (não só nessa peça) as linhas em uníssono pareciam riscadas com ponta grossa, isso não diminuiu a comoção. E que boa surpresa terá sido, para muita gente, ver Cláudio Cruz, spalla da Osesp, regendo com tamanha fluência. Faz a orquestra tocar de outro jeito, mais próximo de um ideal do violinista: um tempo de fundo bem largo, uma grande calma como espaço da música, palco invisível para todas as fantasias e agitações.
Mais fantasia do que agitação no "Concerto nš 2" para trompa de Mozart (1756-91), com o solista Dante Yenque. Um trompista de melancolias, mais que de fanfarras. Nem tudo em Mozart é de Saturno; mas quando aquelas modulações começam... Em suma: se não foi perfeito, foi bonito.
Nem agitação nem exatamente fantasia na "Serenata" de Dvorák (1841-1904). É a felicidade, mesmo. Um tcheco explicou tudo em música; e parece tão simples: uma valsa da Boêmia, ou um tema todo feito de saltos de quinta, com a mais antiga das sequências harmônicas por baixo. Lindas brumas da Orquestra de Câmara, na coda do "Scherzo"; depois um solzinho; depois a luz total da manhã. Deixa a gente no limite de dizer bobagem, porque a gratidão é imensa, o coração bate solto e as palavras viram um entrave. Dá vontade de escutar tudo de novo.

Orquestra de Câmara da Osesp


   
Onde: Sala São Paulo (pça. Júlio Prestes, s/nš, tel. 3337-5414)
Quando: hoje, às 16h30
Quanto: de R$ 16 a R$ 52



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