São Paulo, terça, 20 de janeiro de 1998.



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MOSTRA
Ciclo exibe, a partir de hoje, 17 filmes sobre centros urbanos, como 'O Bandido da Luz Vermelha' e 'Metrópolis'
Cinemateca rege 'A Sinfonia da Cidade'

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

A cidade é o tema do ciclo de 17 filmes que a Cinemateca Brasileira exibe a partir de hoje, até domingo. A seleção vai desde o clássico "Somente as Horas" (1926), de Alberto Cavalcanti, até "Anjos da Noite" (1987), de Wilson Barros, passando pelo indefectível "Metrópolis", de Fritz Lang, além de "Cidade Nua", de Jules Dassin, e o belo "Noite Vazia", de Walter Hugo Khoury.
Mas seria limitar o argumento da mostra "A Sinfonia das Cidades" dizer que esses são filmes "sobre" cidades.
Assim como os trens, as cidades sempre foram mais que um tema privilegiado do cinema. Elas estão na origem das imagens em movimento e funcionam, por uma espécie de deslocamento analógico, como uma representação da própria produção cinematográfica.
Não é por acaso que os pioneiros do cinema, encantados com a própria técnica, filmaram o que analogicamente remetia ao que estavam fazendo.
Não é à toa que o marco do nascimento do cinema seja o filme de um trem entrando numa estação. Ou que tantos filmes dos primórdios tenham se rendido a um dos maiores fascínios da cidade: o de ser a mais alta concentração de movimentos simultâneos.
Cinco filmes da mostra são representativos de um olhar sobre a cidade em que ela se basta. "Somente as Horas", "Berlim, Sinfonia de uma Cidade" (1927), de Walter Ruttmann, "O Homem da Câmera" (1929), de Dziga Vertov, "Chuva" (1929), de Joris Ivens, e "São Paulo, a Symphonia da Metrópole" (1929), de Rudolpho Lustig e Adalberto Kemeny, fazem parte de um tempo de descoberta e fascínio em que o efeito documentário, do simples registro das coisas, já era o espetáculo.
A forma espetacular, por exemplo, com que o russo Vertov consegue refletir e celebrar o próprio meio com que trabalha (sua câmera), transformando o cinegrafista em herói dos tempos modernos, ao registrar, selecionar e montar os movimentos urbanos, não deixa dúvidas ainda hoje quanto à sua inovação.
É verdade que em grande parte essa explosão de encanto com a técnica terminou, por influência dos movimentos das artes plásticas nas primeiras décadas do século, sendo encaixada em um nicho futurista ou formalista que muitas vezes escondia, atrás de um verniz cultural e artisticamente "mais elevado", a poesia mais específica desse deslumbramento com a essência documentária da imagem cinematográfica.
Em Vertov, por exemplo, o homem e a câmera, a subjetividade e a objetividade, estão integrados pelo movimento de uma totalidade urbana. É desse cinema militante e utópico na defesa de uma nova percepção do mundo que vem grande parte da poesia dos filmes que tentam escapar a uma linha narrativa tradicional para nunca deixar o espectador perder de vista o que é a essência heróica e trágica do cinema: a capacidade de registrar o que vai morrer.
É da vontade inocente e bruta de expor essa essência que se alimentam obras-primas do ciclo, como "A Margem" (67), de Ozualdo Candeias, em que São Paulo se ergue como representação melancólica do que o cinema nasceu para ser: uma sinfonia de movimentos que, sem ele, estariam condenados a se perder para sempre.



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